Bruna Brandel Meleck


A REPRESENTAÇÃO DAS MULHERES ATRAVÉS DO JORNAL CORREIO DO NORTE (1947-1948)



O presente trabalho busca analisar a reprodução de estereótipos conservadores e a construção de um padrão de gênero na cidade de Canoinhas, interior do estado de Santa Catarina, através da representação presente no jornal Correio do Norte entre 1947 e 1948. O recorte temporal ocorre devido ao ano de maior frequência da coluna “Secção Feminina”, que aqui pretende-se dar ênfase.

Em primeiro momento se torna necessário apontar que, como mostra Michelle Perrot [1988], existe uma carência de fontes diretas para o estudo sobre as mulheres, uma vez que, a maioria dos materiais (arquivos, documentos, biografias ou publicações periódicas) foram por muito tempo produtos de homens que detinham monopólio dos textos. Sendo visível a necessidade de fontes alternativas para romper com a visão tradicional que oculta à ótica de alguns grupos excluídos.

Portanto, considera-se o debate sobre gênero de extrema relevância, pois a desigualdade entre homens e mulheres continua presente na sociedade contemporânea, e através de estudos críticos se torna possível perceber como tal desigualdade se constrói e se perpetua. Berger e Heuser [2019] afirmam que o desenvolvimento histórico da imprensa feminina oferece subsídios para pensar os papéis atribuídos às mulheres em diferentes momentos da sociedade. Em outro momento, as autoras afirmam, citando Buitoni [1986], que a imprensa feminina, direcionada para mulheres, trata de assuntos que supostamente as interessavam a partir dos papéis sociais que cumpriram em diferentes períodos históricos. Por essa razão, é indispensável compreender que cada sociedade inventa para si um ideal de gênero, de modo que ser mulher depende essencialmente do meio no qual se encontra inserida.

Ativo até os dias atuais, o jornal Correio do Norte teve seu primeiro ano de circulação em 1947, correspondendo ao ano de eleições municipais. Sua criação teve, inicialmente, cunho extremamente político, recebendo apoio partidário e deixando evidente sua publicidade favorável a um dos candidatos a prefeito da cidade. No segundo ano de circulação, período que se busca aqui analisar com maior ênfase, o jornal modifica as estruturas de suas reportagens, e sobre essas circunstâncias a coluna Secção Feminina começa a circular dentro do impresso, tornando-se a primeira coluna frequente assinada apenas por mulheres.  No entanto, sabe-se que durante o mesmo período os grandes centros já contavam com publicações de propósitos educativos e escritos por mulheres, mas é importante ressaltar que cada periódico dialoga com seu tempo e o espaço.
        
Surgindo com intuito de formar um código de etiqueta para que suas leitoras se inspirassem, a coluna buscava caracterizar e regular condutas impondo os padrões esperados. Mas segundo Luca [2018], mesmo com as estratégias persuasivas dos impressos, as leitoras não absorvem passivamente o conteúdo e sequer são meras receptoras de mensagens. Possibilitando assim o entendimento que os discursos reguladores não são interpretados de forma homogênea.

Embora, sobre a perspectiva de imposição de conduta, Foucault [2005] trata como a fabricação de corpos dóceis, impondo a moral e o amoral sobre o indivíduo, categorizando-os para que buscassem seguir as normativas prescritas. Segundo o autor, existe a estratégia binária como uma forma de disciplina, que no caso do jornal, expõem comportamentos considerados fora da norma para que se utilize como exemplo a não seguir, ou seja, deixando evidente o atípico para prevenir transgressões, tratando como práticas divisórias, quando o sujeito é dividido no seu interior em relação ao outro.

“Este mecanismo de dois elementos permite um certo número de operações características da penalidade disciplinar. Em primeiro lugar, a qualificação dos comportamentos e dos desempenhos a partir de dois valores opostos do bem e do mal: em vez da simples separação do proibido, como é feito pela justiça penal, temos uma distribuição entre polo positivo e polo negativo; todo o comportamento cai no campo das boas e das más notas, dos bons e dos maus pontos.” [FOUCAULT, 2014, p. 177].

Pinsky [2018] afirma que a imprensa do início do século XX em geral, buscou destacar o oposto do ideal, o que não se deve fazer, utilizando a imagem da prostituta para educar, onde a mulher, considerada de família, deve evitar agir como ela para não ficar mal falada. A coluna evidencia essa questão determinando as atitudes que caracterizam um ideal de mulher e atitudes que a mulher não deve ter, colocando esses exemplos desde a primeira aparição, chamando de caricaturas, sendo histórias fictícias de maus exemplos. A primeira inicia como o subtítulo: “Uma pergunta... <<Você sabe ser odiosa?>>” e conta a história de Laura, incentivando a leitora identificar a personagem com alguém de seu meio, para que se rejeitem tais atitudes. “O esporte favorito de Laura é estragar o prazer de todas as amigas em qualquer nova aquisição, desde um chapéu até um marido.” [CORREIO DO NORTE, 1948, p. 04].

Dessa forma, a finalização da informação no jornal tem a intenção de formar um código de etiqueta que busca caracterizar a mulher e regular sua conduta com os padrões esperados para o período. Segundo Tereza Joaquim [2019], a civilidade cabe ao saber comportar-se adequadamente em cada situação e os manuais de conduta fazem a enumeração das várias ocasiões e dos comportamentos respectivos, tanto nas situações especiais como bailes e festas, como no quotidiano, sendo maneiras de se deitar, despir, andar, sentar-se ou falar.

Como exemplo a edição que inicia com a proposta “Amiga leitora quer ser fina?” e discorre cinco pontos que a mulher deve seguir para ser fina “Sabe conversar espontanea e agradavelmente? Pode falar sobre Literatura? Conhece a biografia das mulheres mais proeminentes da Historia? Guarda o nome das pessoas que lhe foram apresentadas? Sabe dar o justo sincero elogio aos que merecem?” [CORREIO DO NORTE, 1948, p. 01]. Outro possível exemplo é a publicação intitulada “Seja bonita amiga leitora” que elenca os cuidados importantes que a mulher precisa analisar antes de sair de casa,

“Não saia com vestido amassado ou manchado, verifique previamente os botões, para a ultima hora somente se preocupar com êsses pequenos detalhes. Se usa meias, observe as costuras direitas. Nada mais desagradável que uma costura aberta na perna, dando a impressão de defeito físico. Finalmente, veja os sapatos se estão gastos os saltos e se estão escrupulosamente limpos. Porém, como a nossa terra não permite o uso de sapatos de estio, o mais recomendável é termos um par especial para os dias chuvosos.” [CORREIO DO NORTE, 1948, p. 02]. (Todas as citações apresentadas foram fieis a gramática original.)

Mas é importante evidenciar que o poder não exclui sua liberdade, pois de acordo com Michel Foucault [2014] a resistência existe, indispensavelmente, onde há relações de poder e consiste em quem escapa da normatização do discurso. Nesse caso, em específico, não se consegue medir a influência na vida das leitoras e a resistência pontual das mesmas em cumprir a totalidade das normas. Embora seja evidente que existiram e ganharam linhas dentro da coluna, tendo suas histórias explicitas e contadas através dos exemplos fictícios de caricaturas, mesmo que descritas de forma negativa.

O próprio espaço do jornal cedido à coluna, mesmo reproduzindo estereótipos machistas, é um lugar em que as mulheres passaram a ter suas vozes ouvidas. Não se tem conhecimento sobre o quanto as escritoras entendiam suas escritas como uma possibilidade de intervir no meio social, mas entende-se que não é neutra e recebe influência.

A coluna, diferente de grande parte das publicações, não portava caráter noticiário, trazia informações com intuito educativo e experiências de forma disciplinar, enfatizando a separação do mundo público e privado. Sendo necessário reafirmar que o jornal se constrói através de um conjunto de indivíduos e depende da boa recepção dos leitores para sua continuidade. Então ainda que apresentassem certa liberdade sobre suas escritas, as redatoras precisavam se adequar a perspectiva do jornal em relação a sociedade inserida para garantir permanência. Uma vez que, o jornal também se adéqua as necessidades trazidas pela sociedade que circula em cada período e carrega suas colunas de interesses. Deste modo, entende-se que a imprensa não é um veículo de informações neutras, assim como qualquer outro vestígio do passado, ou seja, apresenta sua visão sobre determinado assunto, sendo apenas uma forma de representar a realidade.

Tendo em vista que a construção de um padrão de mulher ideal da mesma forma se insere em outras colunas e notícias presentes no período, mesmo que tenham diversos autores, é necessário buscar entender as influências que permeiam a escrita. Para exemplificar a importância de contextualizar o jornal para perceber como as perspectivas de certos assuntos estão presentes, busca-se apresentar como o viés político que permeia o Correio do Norte está posto em diferentes assuntos representados. Possuindo as mulheres como foco do presente trabalho, nota-se que ao se referir a elas em relação à política, devido ser um jornal que apoiava o partido político de oposição a Getúlio Vargas, despreza o adjetivo de “Dama Nº1” conferido a esposa de Vargas, afirmando que, “sem embargo da diferença de posições sociais, cremos que toda mulher brasileira, virtuosa e digna carinhosa e santa como soe ser, não pode e nem deve ser humilhada a tal ponto, somente porque os maridos das outras foram guinados ao Poder” [CORREIO DO NORTE, 1947, p. 10]. Utilizando dessa forma, do discurso na tentativa de mover as massas e criar uma identidade de “mulher” que abarque todas elas.

Ao passo que esse discurso transita do âmbito político ao cultural, a mulher é  hierarquizada e diferenciada em relação a sua posição social, desse modo a coluna Secção Feminina afirma que, “uma empregada, por mais dedicada que seja, jamais poderá ter o gosto de uma senhora que vive em outro ambiente e tempo mais tempo para folhear revistas e ver vitrinas da cidade” [CORREIO DO NORTE, 1948, p. 01]. É evidente deste modo como cada discurso está acarretado de intenções diversas que os modificam.

A assinatura da coluna oscilava e diferentes mulheres contaram com a oportunidade de expor suas opiniões na imprensa, mas não é possível contabilizar um total exato de mulheres que assinaram, embora é necessário ressaltar que cada mulher contava com seus preceitos, escrevia de acordo com seus objetivos, intenções e lugares sociais, tratando de diferentes assuntos e enfatizando o que entendiam de maior importância.

Mas em maioria, era evidente o direcionamento para mulheres de maior poder aquisitivo e que não precisavam necessariamente trabalhar fora de casa, pois ao decorrer dos periódicos ressaltam a necessidade de consumo para que mantenham o padrão esperado.

“As tendências da moda que evoluiram lentamente cristalizaram-se agora e o resultado é uma linha radicalmente diferente. Isto significa que a maioria das mulheres quer queria ou não, terá que comprar novos vestidos a fim de ter o seu guarda roupa sempre em dia, ao menos para as ocasiões de gala. Portanto, com todas estas modificações nas roupas e na moda, temos que tomar a resolução de nos manter e possuir o que verdadeiramente é moderno.” [CORREIO DO NORTE, 1948, p. 03].

Leva-se em consideração que não eram todas as mulheres da região que desfrutavam de acesso à educação e que acompanhavam semanalmente o jornal. De acordo com Pinsky [2018] entende-se que os estilos de vida das mulheres variavam conforme a classe social, pois se a família podia permitir elas dedicavam-se apenas ao lar e aos estudos. Já as garotas pobres, começavam cedo a atuar em atividades produtivas, dentro ou fora de casa e para elas, era impossível cumprir todos os preceitos da nova moralidade já que, ao tentar obter algum ganho, eram obrigadas a se deslocar pela cidade, conviver com todo o tipo de gente, sendo reprimidas pelas autoridades com base no ideal de mulher que obviamente não seguiam. Dado que, mesmo sem acesso ao jornal, esse ideal posto na coluna reforça a hierarquia e que as mulheres, as quais estavam de acordo com os padrões morais e financeiros, fossem exemplos que deveriam ser seguidos. Posto isso, entende-se que a utilização da imprensa como fonte possibilita outros olhares para a história, trazendo questões cotidianas e outras perspectivas de registro.

Portanto, não se deve entender os discursos como homogêneos, sendo necessário problematizá-los. Joan Scott [1990] afirma que a história posterior é escrita como se essas posições normativas fossem produto do consenso social e não de conflito, completando ainda que, o desafio da nova pesquisa histórica consiste em fazer explodir essa noção de fixidez, em descobrir a natureza do debate ou da repressão que leva à aparência de uma permanência intemporal na representação binária de gênero.

A coluna Secção Feminina circulou na metade do século XX no jornal de uma pequena cidade no interior do estado de Santa Cataria, mas sabe-se que durante o mesmo período outros periódicos, principalmente em grandes centros, circularam no Brasil com instruções do mesmo caráter educativo (o próprio Correio do Norte fez menção ao Jornal das Moças, revista quinzenal do Rio de Janeiro presente entre 1914 e 1965). Sendo um artefato pedagógico na educação e subjetivação feminina, contribuindo para a perpetuação dos estereótipos de gênero.

Mas devido à impossibilidade de medir a recepção do jornal no cotidiano das leitoras, tem-se o estudo como a possibilidade de abordar o caráter rotineiro da coluna nos periódicos semanais sob forma de uma estrutura de poder, estrutura essa que reproduz estereótipos de gênero e reforça os padrões de uma sociedade patriarcal através do aspecto de naturalização do discurso.

Referências
Bruna Brandel Meleck é mestranda do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da Grande Dourados. 

BERGER, Christa; HEUSER, Vanessa. Imprensa Feminista. IN: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antônio (Org.). Dicionário crítico de gênero. 2. ed. Dourados: Ed. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019. PP. 413-418.
FOUCAULT, M. O Sujeito e o poder. IN: DREYFUS, Hubert; RABINOW, Paul (org.). Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005, p. 231-249.
FOUCAULT, M. Vigiar e Punir. A história da violência nas prisões. 42. ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
JOAQUIM, Teresa. Manuais de civilidade/ comportamento. IN: COLLING, Ana Maria; TEDESCHI, Losandro Antônio (Org.). Dicionário crítico de gênero. 2. ed. Dourados: Ed. Universidade Federal da Grande Dourados, 2019. PP. 471-475.
LUCA, Tania Regina de. Mulher em revista. IN: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org.). Nova história das mulheres no Brasil. 1. ed., 3ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2018, p. 447-468.
PERROT, Michelle. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. 
PINSKY, Carla Bassanezi. A era dos modelos rígidos. IN: PINSKY, Carla Bassanezi; PEDRO, Joana Maria (org.). Nova história das mulheres no Brasil. 1. ed., 3ª reimpressão. São Paulo: Contexto, 2018, p. 469-512.

SCOTT Joan. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Revista Educação e Realidade. Porto Alegre, jul/dez 1990, 16(2):5-22.

Jornais:
CORREIO DO NORTE, Canoinhas. Damas N.1, nº 01, 29 de maio de 1947.
CORREIO DO NORTE, Canoinhas. Secção Feminina, nº 49, 6 de maio de 1948.
CORREIO DO NORTE, Canoinhas. Secção Feminina, nº 50, 13 de maio de 1948.
CORREIO DO NORTE, Canoinhas. Secção Feminina, nº 51, 20 de maio de 1948.
CORREIO DO NORTE, Canoinhas. Secção Feminina, nº 55, 22 de junho de 1948.
CORREIO DO NORTE, Canoinhas. Secção Feminina, nº 54, 10 de junho de 1948.

Um comentário:

  1. Mas então, o jornal não contribuia para uma imagem feminina ou feminista?
    obrigada
    Maria Rosário Fierstesche

    ResponderExcluir

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.