Jaqueline Ap. M. Zarbato


CULTURA E PATRIMÔNIO HISTÓRICO NO CONTEXTO URBANO EM CAMPO GRANDE/MS/BRASIL E EM MAR DEL PLATA/ARGENTINA: PROPOSIÇÕES PARA ANÁLISE DAS COLEÇÕES FEMININAS EM MUSEUS



Essa proposta faz parte do projeto de pesquisa: Patrimônio histórico-cultural material e imaterial nas cidades de Mato Grosso do Sul e seu impacto histórico- cultural: Cultura regional e formação de um sistema de preservação a partir da educação patrimonial, vinculado ao acordo de cooperação internacional, entre a UFMS e UNMDP, visando abordar as possibilidades de investigação histórica nas cidades de Campo Grande/MS/Brasil e Mar del Plata, na Argentina.

Mar del Plata é uma cidade localizada ao sudeste da Província de Buenos Aires, Argentina, sobre a costa do mar argentino. A cidade se estabeleceu devido ao porto e ao balneário, foi fundada em 10/02/1874 sobre a base das extintas missões jesuíticas. As principais indústrias são de pesca, turística e têxtil.  Campo Grande, município da região centro oeste do Brasil, capital de Mato Grosso do Sul. A cidade foi planejada em meio a uma vasta área verde. Em 1870, migrantes da região sudeste colonizaram a região, com a criação de fazendas. De modo geral, a maior parte da mão-de-obra ativa do município é absorvida pelo setor terciário (comércio de mercadorias e prestação de serviços). A construção civil também desempenha papel muito importante na economia local e o serviço público.

As duas cidades tem em sua urbanização elementos que remetem a dimensão da paisagem e natureza. Voltadas para a construção cultural de um contexto urbano que levem em conta as concepções históricas e a dinâmica urbana da modernidade. Assim, em meio as ruas alargadas, as praças, aos supermercados, aos edifícios pós modernos há a resistência de patrimônios históricos que remontam a história e memória das cidades. Esses patrimônios, como monumentos, museus, igrejas históricas fazem parte da cultura histórica de diferentes grupos, representando a contribuição  da manutenção e preservação dos patrimônios, mas também da busca pela sedimentação de identidades e memórias históricas da cidade.

A memória, analisada como vivências e experiências coletivas, que podem ser ressignificadas no presente, como fio que conduz as tramas das relações que envolvem subjetividades dos diferentes grupos sociais. Dessa forma, “a memória é um elemento essencial do que se costuma chamar de identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia” (Le Goff, 1996, p. 472). Sendo assim, o cenário as museologias e dos museus nacionais possibilitam algumas reflexões acerca das perspectivas de entrelaçamento com os estudos de gênero. São diversos os espaços museológicos que permitem ressaltar a presença e protagonismo da mulher na sociedade e, pensar a museologia a partir de uma perspectiva de gênero é um grande desafio, sendo importante lembrar que é errônea a equiparação de “gênero” com “mulheres”. Segundo Aida Rechena:

“Na verdade, gênero refere-se à construção social da masculinidade e da feminilidade e engloba um complexo sistema de relações que ultrapassa em muito a relação homem/ mulher, entretanto em campos como os da identidade e cultura gay, transgênero, transexualidade, bissexualidade, androginia e o chamado “terceiro sexo”. Isso significa que nos estudos de gênero estão englobadas todas as formas sociais e culturais de ser <ser humano>, independentemente do sexo biológico ou da orientação sexual.” (RECHENA, 2014, p. 154)

Gonçalves (2002. p.121-122), ao abordar a ressonância sobre o patrimônio, afirma que:

“os patrimônios culturais são estratégias por meio das quais grupos  sociais e indivíduos narram sua memória e sua identidade, buscando para elas um  lugar público de reconhecimento, na  medida mesmo em que as transformam em ‘patrimônio’. Transformar objetos, estruturas arquitetônicas e estruturas urbanístísticas em patrimônio cultural significa atribuir-lhes uma função de ‘representação’, que funda a memória e a identidade. (...) Os patrimônios são, assim, instrumentos de constituição de subjetividades individuais e coletivas, um recurso à disposição de grupos sociais e seus representantes em sua luta por reconhecimento social e político no espaço público.”

Já para Ivo Matozzi (2008, p. 138), para abordar a questão do patrimônio é necessário analisá-lo segundo algumas premissas:

“Primeiramente, porque os bens culturais são simplesmente marcas que devem ser transformadas em instrumentos de informação, mas se tornam elementos que marcam o território e são o meio de seu conhecimento. Em segundo lugar, porque são considerados parte de um patrimônio difuso no território,em relações com instituições e administrações que têm poderes de gestão de alguns aspectos do território (governos locais, superintendências, direções de museus e de sítios patrimoniais...).Graças ao uso dos bens culturais e graças à educação para o patrimônio, o aluno adquire conhecimentos sobre o território e sobre os problemas da sua gestão e pode tornar-se um cidadão consciente, interessado e crítico.”
        
Nos anos 1950, a UNESCO passou a ser o órgão que retomou a orientação e regulação internacional destinada à preservação dos bens patrimoniais históricos culturais. Entre as propostas da UNESCO está o planejamento urbano como principal ferramenta de preservação, e também encaminhamentos  sobre as normas e cartas patrimoniais.   Funari e Pelegrini(2009,p. 10) destacam que a noção de patrimônio (patrimonium) se referia, aos antigos romanos, a tudo que pertencia ao pai, paters ou paters família, pai de família.

Funari e Pelegrini( 2009, p 20) salientam ainda a efetiva construção das noções de patrimônio, a partir da criação dos Estados Nacionais e  após a Revolução Francesa. Mas, são contundentes em argumentar que, em diferentes tradições, há traços comuns: compreendido como em primeiro lugar entendido com bem material concreto, monumento, edifício. Como pressupostos há valores comuns, compartilhados por todos, que se substanciam em casos concretos. Em segundo lugar, aquilo que é determinado como patrimônio é excepcional, o belo, exemplar, o que representa a nacionalidade. Uma terceira característica é a criação de instituições patrimoniais, além de uma legislação específica.

As paisagens das cidades se modificam e com isso mudam as táticas e estratégias para viver nestes espaços urbanos, desta forma, a cidade é, portanto, feita de desordens táticas, que expressam sua complexidade frágil e lhe permitem, apesar da mudança contínua, manter-se íntegra.  Mary-Catherine Garden( 2004, p 01) utiliza o termo "patrimônio-paisagem" se referindo a "paisagens do patrimônio”, em que constam sítio patrimoniais que existem dentro de extensões físicas e sociais mais amplas. Segundo a autora, ao pensar no patrimônio como patrimônio-paisagem - ou seja, como paisagens - chama a atenção para suas qualidades como espaços dinâmicos e em mudança.

A intensificação dos debates sobre as paisagens patrimônio, tem sido utilizada nas abordagens sobre patrimônio e turismo, mas podemos analisá-la  no campo histórico, pois envolve as dimensões de  transformações  em contextos urbanos, com vista principalmente a sustentabilidade. Nesse sentido, a  sustentabilidade – garante que as necessidades ambientais, econômicas e sociais da população sejam atendidas sem sacrificar as gerações futuras - é uma preocupação crescente, particularmente entre os pesquisadores e praticantes do turismo.

O processo de sustentabilidade dimensiona no contexto urbano, as caracteristicas das paisagens.  Anne Cauquelin afirma que o termo “paisagem” está ausente do vocabulário ocidental. “A natureza, sua compreensão, pertence à ordem do intelecto, não da sensibilidade.” (CAUQUELIN, 1998, p. 25).  Usa-se o termo topio, para designar um pequeno lugar que uma paisagem. A natureza, designada por phusis, a qual foi objeto de numerosas definições entre filósofos. Relacionada como recurso divino à sobrevivência dos seres, suas manifestações que são visíveis e, portanto, mais concretas. Mas, afirma também que o sujeito moderno, ao toque do consumo descartável, passa a ter uma relação ainda mais fugaz com a natureza, modificando intensamente os ciclos naturais, o clima, os ecossistemas e, consequentemente, as paisagens. E, neste processo, a  sustentabilidade se insere, pois:

“A paisagem não é mais esse bonito fundo sobre o qual se destacam belos objetos escultóricos chamados de arquitetura, mas o lugar no qual pode instalar-se uma nova relação entre os não-humanos e os humanos: um fórum cósmico onde devemos reescrever toda a herança recebida; a democracia estendida às coisas, em novo pacto.” (ÁBALOS, 2004, p. 2).

A democracia amplia também as noções de espaço e circulação dos saberes, influenciando no que se considera necessário preservar, seja paisagem ou objeto material.  Buscando pensar na preservação como algo maior, que integra todos os conteúdos e contextos urbanos. O que se busca preservar “[...] é a perenidade dessa forma, único objeto de transmissão [...]” (CAUQUELIN, 1998, p. 27).

Ignacy Sachs (1995, 2000) apresentou alguns critérios de sustentabilidade, entre os quais a sustentabilidade cultural que, refere-se às mudanças no interior da continuidade (equilíbrio entre respeito à tradição e inovação) e à capacidade de autonomia para elaboração de um projeto nacional integrado e endógeno (em oposição à cópia de modelos do exterior). Desta forma, a sustentabilidade cultural refere-se, nesse processo,  ao que deve ser dado às diferentes culturas e às suas contribuições para a construção de modelos de desenvolvimento apropriados às especificidades de cada ecossistema, cada cultura, cada local, sendo  utilizada também na perspectiva das relações entre cultura e desenvolvimento.

A pesquisa se desenvolve a partir de documentos históricos, fotografias, escritos jornalísticos e escritos de memorialistas, de monumentos, museus, bens patrimoniais nas cidades de Campo Grande e Mar del Plata, relacionando a concepção de contexto urbano com as construções de memórias de migrantes, bem como de ‘fundadores’ das cidades, além de compreender a contribuição de diferentes grupos culturais na constituição da memória desses lugares e de que forma podem ser utilizados no ensino de história. Os museus e as instituições de cultura viveram estas mudanças de modo radical. Nos anos 1960 e 1970, ocorreu uma expansão e uma revisão museológica; movimentos eclodiram no cenário internacional e desestabilizam os sistemas de museus. As artes, culturas, políticas e instituições foram afetadas. Interesses privados, movimentos artísticos e da sociedade civil disputaram ou tentaram influenciar a orientação do campo. A Indústria cultural empenhou-se em transformar o Museu em negócio e lugar de espetáculo. Nos anos 90, os neoliberais que ocuparam postos estratégicos de poder na América Latina, perseguiram este modelo. Este processo marcou profundamente a América Latina. 

Pretende-se identificar as principais características de objetos, obras, coleções, elementos culturais e imagens que tenham a representação feminina no Museu José Antônio Pereira. Visando, principalmente relacionar como estão dispostos e representados os bens patrimoniais que sejam relacionados ao saber fazer de mulheres, sejam negras, brancas, indígenas. em que seja possível compreender a utilização de tais artefatos históricos como construtores de identidades. reconhecendo o museu como uma instituição também da comunidade, cujo patrimônio pode ser concebido como instrumento da construção da identidade e consequentemente da cidadania.   Influenciada pela necessidade de abordar os saberes femininos, a maneira de ensinar a história pelo prisma da mulher a pesquisa com o museu tem como objetivo analisar e enfrentar o silenciamento da participação das mulheres na história da fundação da cidade, para isso nos baseamos teoricamente em análises sobre patrimônio histórico (Gonçalves),  história das mulheres( Michele Perrot), museu e história (Mario Chagas) narrativas históricas (Verena Alberti), ensino de história (Jorn Rusen, Maria A. Schmidt), museologia de gênero (Rechena) e antropologia dos objetos (Gonçalves), museologia social (Moutinho) e Ecomuseus (Pessoa). Foi realizado um estudo dos objetos expostos que possuem ligação com o saber feminino do século XIX, fazendo uso da teoria das Representações Sociais em diálogo com a museologia de gênero. 

A abordagem metodológica visa fundamentar  como o saber/fazer das mulheres são representados e organizados nas ações  e coleções de museus na América Latina, fazendo um panorama de que espaços possuem coleções femininas ou que constam como diversidade cultural. 

Referências
Jaqueline Ap. M. Zarbato, doutora em História. Docente  no curso de História/UFMS. Docente no Profhistória/UFMT e PPGE/CPTL. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Ensino de História, Mulheres e patrimônio( GEMUP).

HALL, Stuart. Da diáspora identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
IPHAN. Instituto do Patrimônio Histórico Artístico Nacional. Patrimônio cultural material e imaterial. Brasília: Ministério da Cultura, 2007.
FONSECA, Maria Cecília Londres. Para além da pedra e cal: por uma concepção ampla de patrimônio cultural. In: Memória e Patrimônio: Ensaios Contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
FRAGA, Hilda Jaqueline. A cidade como documento no ensino de história. In: POSSAMAI, Zita Rosane. Leituras da Cidade. Porto Alegre: Evangraf, 2010. p. 221–235.
FUNARI, Pedro Paulo & PELEGRINI, Sandra C.A. Políticas Patrimoniais no Brasil: impasses e realizações. Patrimônio Histórico e Cultural. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 2006. 
HORTA, Maria de Lourdes Parreira; GRUNBERG, Evelina; MONTEIRO, Adriane Queiroz. Guia de educação patrimonial. Brasília: Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, Museu Imperial, 1999.
ROBALINHO, Marta C. D. & COSTA, Carina M. Aprender com objetos no Museu da República: propostas de leitura das dobras do tempo. Fronteiras: Revista de História | Dourados, MS | v. 18 | n. 31 | p. 305 - 321 | Jan. / Jun. 2016.
RUSEN, J. Como dar sentido ao passado: questões relevantes de meta-história. Revista História da Historiografia, n.2, p.163-209, mar. 2009.
______________. A formação histórica de sentido como problema da didática histórica In:Cultura faz sentido. Orientações entre ontem e o amanhã. 2013.
SCHIMIDT, Maria Auxiliadora. A Formação do professor de história no cotidiano da sala de aula. In: BITENCOURT, Circe (org). Saber histórico na sala de aula. São Paulo, Contexto, 1998.
SOARES, André Luis Ramos (Org.). Educação patrimonial: relatos e experiências. Santa Maria: Ed. da UFSM, 2003.

5 comentários:

  1. Parabéns professora Jaqueline, pela proposta desta pesquisa, muito instigante! Além dos livros didáticos e saberes docentes no ensino de história, é importante confrontarmos também os espaços educativos informais que como o museu participam na construção de nossa cultura histórica e, por conseguinte, desencadeiam processos de subjetivação (construção de sujeitos/identidades). Em minhas pesquisas sobre representações de mulheres em livros didáticos observei que em boa parte das narrativas as mulheres aparecem como seres secundários ou coadjuvantes. Nas narrativas históricas principais destes livros, elas geralmente aparecem de maneira vitimimizada e inferiorizada nas relações com os homens, servindo apenas para complementar ou reforçar ainda mais a importância, superioridade e dominação de homens brancos, hetero, cristãos e burgueses na história. Nesse sentido, é fundamental analisar também a ordem discursiva e epistêmica que incorpora as mulheres na história escolar para melhor compreensão e problematização das condições de produção/enunciação de representações históricas que ainda educam para a desigualdade de gênero. A partir destas leituras, sua proposta de pesquisa me suscitou mais algumas questões que podem envolver a compreensão da historicidade das representações museológicas. Seria importante também perguntar qual seria essa ordem discursiva e epistêmica - museológica - que incorpora as mulheres na história das cidades de Campo Grande e Mar del Plata. Que grupos sociais, valores, interesses ou perspectivas se relacionam com tais ordenamentos? E quais as implicações educativas, políticas e identitárias da cultura histórica que se difunde nestes museus? Além disso, considerando as interseccionalidades do gênero à raça, classe, etnia, orientação sexual, religião, idade, território, etc. que mulheres são mais privilegiadas nas representações museológicas da história destas cidades? Qual a função e importância das representações femininas no contexto das exposições ou narrativas museológicas? Quais são as fontes históricas mais privilegiadas por estes museus? E que olhar ou ponto de vista predominam nestas fontes?
    Desejo-lhe sucesso na pesquisa!!!

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  2. Olá Susane
    Obrigada pela participação.
    A questão da participação feminina na perspectiva histórico museológica nos mostra o quanto ainda temos que avançar na equidade de pesquisas de gênero.
    Incorporarei as tuas sugestões na pesquisa, principalmente sobre as interseccionalidades do gênero à raça, classe, etnia, orientação sexual, religião, idade, território. Pois até o momento percebemos que as representações femininas são mais do prisma das 'mulheres brancas', ainda vinculadas a elite regional. E as exposições tratam de temas mais relacionados ao cotidiano privado e não público de algumas mulheres.

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  3. Oi Jaque!
    Que lindo esse trabalho com patrimônio, com a percepção e relação das pessoas com o espaço urbano e a paisagem. Muitas vezes parece que nosso estilo de vida nos desliga do próprio lugar em que vivemos, e o capitalismo se encarrega de homogeneizar todos os lugares. Por isso essas parcerias internacionais são tão importantes, no sentido de conhecer o outro - e também de redescobrir a alteridade que carregamos em nós. Trabalho maravilhoso, Jaque!

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