Bruna Alves Lopes e Geane Caroline Wiltemburg


ESCRITA DE SI, GÊNERO E LOUCURA NA OBRA ‘HOSPÍCIO É DEUS’ DE MAURA LOPES CANÇADO



Maura Lopes Cançado foi uma escritora brasileira conhecida pelas obras Hospício é Deus – Diário I e Sofredor do Ver. Nascida em 1930, em uma tradicional e influente família da oligarquia rural mineira, teve sua vida permeada por internamentos em instituições manicomiais. Seu primeiro internamento ocorreu em 1949, voluntariamente, devido a crises depressivas. Na década de 50 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde conviveu com a elite intelectual e artística da cidade. Trabalhou nos periódicos Jornal do Brasil e Correio da Manhã (veículos responsáveis pela publicação de grande parte de sua obra literária composta, principalmente, de contos e crônicas). No primeiro, publicava na coluna “Suplemento Dominical” ao lado de nomes como Reynaldo Jardim, Ferreira Gullar e Carlos Heitor Cony. Seus contos, que foram escritos simultaneamente às suas internações e tentativas de readaptação, renderam-lhe aclamação e premiações. Alguns deles formam a coletânea intitulada “O sofredor do ver”, publicada em 1968.

Publicado anteriormente, Hospício é Deus foi escrito durante um de seus internamentos no Hospital Gustavo Riedel, no Engenho de Dentro, pertencente ao Centro Psiquiátrico Nacional. Publicado em 1965, o livro divide-se em duas partes. A primeira, de aproximadamente 30 páginas, é uma espécie de autobiografia. O texto, descritivo e repleto de lembranças, memórias e laços afetivos, enfatiza o período da infância e adolescência da autora. Nele ela aborda suas crises epiléticas, os abusos sexuais sofridos durante a infância, suas aventuras como integrante de um aeroclube e sua prática de pilotar aeronaves, seu casamento e maternidade, bem como seu conflito com o papel, ideal de mãe. Também relata, entre outras coisas, o abandono do seu filho aos 03 anos de idade e o preconceito sofrido por ser uma mulher separada (embora o divórcio não fosse instituído no país, nesse período). Encerra relatando seu sofrimento com os reflexos do condicionamento imposto pela sociedade a uma mulher jovem que percebe além do que é apresentado como verdade.  A segunda parte é composta de um diário escrito entre 25 de outubro de 1959 e 07 de março de 1960. Nele, Maura relata seu cotidiano, como percebeu e ressignificou sua experiência de adoecimento e internamento. Além disso, aborda suas concepções sobre loucura, os ditos loucos, sobre o funcionamento da instituição manicomial, dos tratamentos, das relações com outras pacientes e também com médicos e demais funcionários da instituição, bem como seu entendimento e relação com seu diagnóstico, a esquizofrenia.

 A obra, que possui três edições e atualmente encontra-se esgotada, possibilita um olhar sobre a hospitalização do ponto de vista da mulher institucionalizada (isso num contexto em que a voz do paciente era obliterada pelo discurso médico) tornando-se uma importante fonte sobre o cotidiano nos hospitais psiquiátricos ao longo da década de 1960, além de apresentar denúncias acerca das violências empregadas dentro das instituições. Nas linhas que seguem dedicaremos nossa atenção na discussão sobre escrita de si, gênero e loucura.

De acordo com Milan [2016 p.154] os diários se tornaram, ao longo do tempo, um espaço importante para a escrita de si feminina “[...] servindo como um instrumento para a construção do ser; uma maneira de se conhecer e de se fazer conhecer”. No que diz respeito ao processo de hospitalização tais características da escrita e si pode adquirir um novo significado: não apenas se conhecer, mas manter ativo na memória, por meio da escrita, a imagem de quem se é ou imagina-se ser. Isso porque, quando uma pessoa entra no ambiente hospitalar para receber cuidados médicos, há um processo de transformação: o ‘eu’ anterior à internação é transformado na figura do paciente e, a partir de então, passa a ser submetido  às regras da instituição e as decisões feitas pelos especialistas [CARAPINHEIRO, 2005]. Nesse sentido, são interessantes as palavras de Carapinheiro [2005, p.56]: “Nota-se as formalidades da chegada ao hospital e ao setor de internamento, o despojo das roupas e valores pessoais, a atribuição de uma cama e a obrigatoriedade de a ocupar imediatamente, a circulação das papeletas e das pastas onde passa a ser registrada uma outra biografia, a biografia de um homem doente”. Maura registra sua percepção desse momento em seu diário: “Estranha minha situação no hospital. Pareço ter rompido completamente com o passado, tudo começa no instante em que vesti este uniforme amorfo, ou, depois disto nada existindo – a não ser uma pausa branca e muda. Estou aqui e sou. É a única afirmativa, calada e neutra como os corredores longos” [CANÇADO, 1991, p. 32]

Tendo em vista que o ambiente hospitalar, em especial os dedicados ao atendimento psiquiátrico, é  marcado por esse ‘despojo do eu’ a primeira reflexão que se faz pertinente é problematizar o que significava, dentro desse contexto, ser mulher, internada e dedicar-se a escrita. Em outras palavras, questionamos como a escrita de Maura expressa a visão de si e do espaço em que estava.

Ao analisarmos a fonte observamos que a loucura é o que “dá sentido” a narrativa de Maura e, ao mesmo tempo, é aquilo que ela interpreta atribuindo sentido. Sua narrativa menciona o período da infância, talvez numa tentativa de encontrar nela os primeiros indícios/sinais dos elementos que, mais tarde a levam a passar por algumas internações psiquiátricas. Nesse sentido observamos os sentimentos de inapropriação à sociedade decorrentes de suas trajetórias e ações diante dos acontecimentos (exemplo: suas crises epilépticas, os abusos, sentimento de culpa e a loucura) como, também, as consequências de seus comportamentos, considerados fora dos padrões estabelecidos, pela sociedade que a autora aponta como preconceituosa. Ainda sobre a dificuldade de relacionar-se com os demais e na busca de sinais que a ajudassem a compreender o que acontecia, aponta: “Aprendi que só tinha a mim e minha presença me agradava. Lia sem parar, pensava muito – eu me impunha uma disciplina interior espartana. O que eu buscava sem cessar era uma coerência que desse sentido à minha vida. Talvez, se eu enlouquecesse, conseguisse dar vida às coisas que existiam em mim e que eu não era capaz de exprimir. [CANÇADO, 1991, P.63]

Deus e loucura na narrativa são termos marcantes, a ponto de ser inserido no título do livro, sendo os dois termos associados à ideia de distância e eternidade. O hospício seria o olhar sempre vigilante e punitivo descrito na autobiografia, o local repressor. Porém, também o local de refúgio. O lugar onde Maura buscava a estabilidade, a compreensão não encontrada na sociedade. Wadi [2017, p.2] aponta: “A procura por compreensão, a fuga da solidão, apesar da atenção e carinho que recebia em seu local de trabalho, foram justificativas para a busca por internação.” Comenta ainda que esses argumentos foram uma constante, tanto em internamentos anteriores quanto posteriores.  Aprofundando o quesito distância, fica claro que Maura Lopes Cançado sempre achou que havia uma distância entre ela e os demais, mesmo na sua família: sua condição de filha amada, a classe social, o capital cultural e, posteriormente, o divórcio e a loucura criaram a compreensão de que não conseguia relacionar-se em igualdade com os demais. Em seus textos utiliza adjetivos de superioridade e se auto intitula como “super Maura”, “hiper Maura”, “Maurissíma”, “Maura de todas as coisas e nada” [CANÇADO, 1991, p.137]. Também aborda essa ideia de distância ao comentar que procura sua dimensão humana no olhar das pessoas, no outro – e não a encontra - e que seu reino não seria desse mundo, onde tudo se mostraria difícil e insuportável [CANÇADO, 1991, p.157]. A distância poderia ser, também, consequência do sentimento de isolamento social. No processo de internação tais reflexões se acentuaram:

“O que me assombra na loucura é a distância – os loucos parecem eternos. Nem as pirâmides do Egito, as múmias milenares, os mausoléus mais gigantescos e antigo, possuem a marca de eternidade que ostenta a loucura. Diante da morte não sabia para onde voltar-me: inelutável, decisiva. Hoje, junto dos loucos, sinto certo descaso pela morte: cava, subterrânea, desintegração, fim. Que mais? Morrer é imundo e humilhante. O morto é naúseo, e se observado, acusa alto a falta do que o distinguia. [..] só diante do louco tenha experimentado a sensação de eternidade. Nele não encontramos fala. Nos parece excessivo, movendo-se noutra espécie de vibração. Junto dele estamos sós. Não sabendo situá-lo fica-se em dúvida: onde se acha a solidão? O louco é divino na minha tentativa fraca e angustiante de compreensão. É eterno.” [CANÇADO, 1991, p.26]

Nesse sentido, vemos na escrita uma primeira tentativa de atribuir um sentido e ordem àquilo que parece sem razão e permeado pelo caos. Mendes e Mendonça [2002, p.117] defendem que “A experiência da doença se refere, basicamente, à forma como as pessoas e os grupos sociais assumem a situação da doença ou nela se situam”.  Escrever seria, então, o primeiro passo para manter a sanidade e, ao mesmo tempo, manter-se como protagonista num contexto em que aqueles considerados ‘outros’ (médicos, guardas e demais funcionários da instituição) ignoram sua individualidade e, não raro, humanidade:

“O doente, ainda preso ao mundo de onde não saiu completamente, tratado com brutalidade, desrespeito, maldade mesmo, reage. Tenta agarrar-se ao mundo de onde não saiu completamente. Apega-se a seus antigos valores, dos quais não se libertou tranquilo. Principalmente teme: a característica do doente mental é o medo (não o medo das guardas, dos médicos. O medo de se perder de todo antes de se encontrar). Considero um noviciado, depois do que as provas perdem razão de ser [...]” [CANÇADO, 1991, p. 27].

De acordo com a análise de Maura, a resistência era uma forma de manter-se na condição de sujeito, apesar da violência praticada pela instituição. Era um mecanismo utilizado para dizer a si mesma que não se entregou à vontade, não raro perversa, do outro. Assim, mesmo as ações que em outros contextos seriam consideradas rudes e pouco educadas, dentro do hospício eram uma forma de manter-se íntegro a quem se é: chutes, uso de palavrões, jogar objetos, entre outros, são alguns dos exemplos citados ao longo do diário. Wadi (2017) ressalta que Maura também aponta o peso do diagnóstico, que passaria a definir as pessoas internadas. Com ele e a consequente hospitalização, surgiriam mudanças que provocam efeitos na pessoa e na forma como esta se observa e é observada, o que Goffman (1999) denominou carreira moral. Para Wadi (2017), Maura se agarrava ao mundo externo para fugir dessa carreira moral já iniciada. Essa resistência causava embates com médicos e com a estrutura do hospital, que foi repetidamente questionada. Segundo Gomes e Mendonça [2002, p.114]: “(...) podemos dizer que essa experiência depende muito do que se entende por doença e que entendimento reflete, além dos aspectos subjetivos, questões socioculturais mais amplas. Por isso nem sempre os conceitos dos profissionais de saúde e o das pessoas que vivem a doença têm os mesmos significados”. Os embates entre ela e os médicos são frequentes e, conforme mencionado anteriormente, sua escrita é uma denúncia dos maus tratos, tratamentos considerados inadequados, ameaças e outros. Maura observa a loucura como algo diferente da doença mental e o seu receio “de se perder como um todo” é uma constante em sua narrativa. Um dos símbolos desse receio é a forma como aborda a terapêutica do pátio, um local onde acomodariam os pacientes mais graves, aqueles que já não possuem medo ou reações.

Em sua escrita observamos que as internas letradas recorriam a outro instrumento de resistência: o uso da escrita: “Aqui estou de novo nesta ‘cidade triste’, é daqui que escrevo”. Não sei se rasgarei estas páginas, se as darei ao médico, se as guardarei para serem lidas mais tarde. Não sei se têm algum valor. Ignoro se tenho algum valor, ainda no sofrimento. Sou uma que veio voluntariamente para essa cidade – talvez seja a única diferença. Com o que escrevo poderia mandar aos “que não sabem” uma mensagem do nosso mundo sombrio. [...] dizem que escrevo bem. Não sei. Muitas internadas escrevem. O que escrevem não chega a ninguém – parecem fazê-lo para elas mesmas. Jamais consegui entender-lhes as mensagens. [CANÇADO, 1991, p. 31].

Ainda que não tivessem a esperança de que seus escritos fossem publicados, fica claro que a escrita se tornou para as alfabetizadas um espaço/tempo importante para suportar e ressignificar a experiência da internação. No caso de Maura, escritora já conhecida naquele momento, dedicar-se ao diário teve mais dois significados que importantes a serem destacados: 1) testemunhar o cotidiano das mulheres, de diferentes classes, raças, gerações dentro do hospício e, a partir dessa observação in loco, denunciar tanto o desconhecimento e descaso daqueles que nunca passaram por tal experiência e, portanto, muitas vezes romantizavam o hospício e a loucura quanto denunciar as práticas realizadas dentro daquele espaço. Outra questão importante era 2) humanizar as internadas tirando-as do anonimato, imposto pela família e pela instituição, e da desumanização, expressa pela palavra paciente e por várias práticas hospitalares, que retirava dessas mulheres a identidade (nome, gostos, talentos, estilo de vestuário, história) e categorizava-as a partir da patologia transformando em única memória legítima aquela narrada pelo prontuário.

Entre as mulheres que marcaram Maura Cançado nessa internação, Dona Auda foi uma das mais citadas em seu diário. O primeiro registro da escritora em relação à colega de internamento surge na página 27 e, a partir de então, torna-se um dos nomes mais citados ao longo da obra, dedicando-lhe manifestações de carinho e afeto. Descreve Dona Auda como uma interna antiga, hospitalizada há mais de 20 anos, uma antiga modista. Considerada um caso perdido, passava o dia no pátio, horas na mesma posição e, quando não estava lá, fazia o que era esperado dela: o proibido. Para ela, Auda tinha medo. E, por isso agredia, antes de ser agredida. Rasgava vestidos e fazia gestos obscenos. Porém, no seu ponto de vista, as pessoas só se aproximavam de Auda para insultá-la.

Inicialmente a admirava porque parecia-lhe totalmente livre, pois não precisaria de mais ninguém. Posteriormente, entendeu que aquela postura era o reflexo do sentimento de solidão e renegação. Como todos, Auda necessitava de todo mundo.

A partir de Dona Auda vemos Maura refletindo sobre o poder do ato de escrever.  Enquanto o hospício desumaniza — sendo a trajetória da colega de internação um exemplo claro para Maura disso — o papel da escrita era humanizar por meio das palavras. Relatar-se, nesse contexto, significava responsabilizar-se [BUTLER, 2017] e fazer falar/reconhecer aqueles que, devido à violência ética praticada em nome da suposta preocupação com a saúde mental, foram sistematicamente retirados de cenas em que seus corpos poderiam ser vistos e suas vozes ouvidas. Ainda que Maura e Dona Auda fossem ambas mulheres internadas na mesma instituição, a escritora tinha consciência de que ainda possuía instrumentos para que seu sussurro fosse escutado e, a partir dele, que Dona Auda fosse vista para além da identidade ‘louca’. 

Podemos dizer que Maura  aproveitou  dois momentos para tornar pública a história de Auda: no conto “Introdução a Alda”, publicado no livro o Sofredor do Ver e no seu diário tornado público. Na perspectiva de Maura há uma clara distinção entre as mulheres retratadas nos seus escritos, distinção essa expressa inclusive na grafia do nome. A primeira, apresentada no conto, era a “louca” cuja imagem era aquela descrita pela instituição. O desconhecimento da mulher por detrás da paciente é observado inclusive no desconhecimento em relação a grafia correta de seu nome (Com a letra u e não l como acreditou a autora). A repercussão do conto deu visibilidade a Auda e possibilitou alterações nas atitudes das pessoas em relação a ela. Maura observou que o texto possibilitou que a “Alda” retornasse a ser “Auda”, ou seja, um ser humano, antes de ser alguém com uma patologia. Sobre o impacto exercido pelo uso da escrita afirmou: “Para mim, só o amor e a compreensão farão o milagre de descobrir Audas, desarmadas e autênticas.” 

Referências
Bruna Alves Lopes é Licenciada em História, mestre e doutora em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa.
Geane Caroline Wiltemburg é Bacharel em Turismo, Licenciada em História e mestranda em História na Universidade Estadual de Ponta Grossa.

BUTLER, Judith. Relatar a si mesmo: crítica da violência ética. Tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Diário I, 3. ed., São Paulo, Círculo do Livro, 1991.
CANÇADO, Maura Lopes.  O sofredor do ver, Rio de Janeiro, José Alvaro Editor, 1968.
CARAPINHEIRO, Graças. Saberes e poderes no hospital: uma sociologia dos serviços hospitalares. Porto: Edições Afrontamento Ltda, 2005.
GOFFMAN, Erving. Manicômios, prisões e conventos, 9. ed., São Paulo, Perspectiva, 1999.
GOMES, Romeu; MENDONÇA, Eduardo Alves. A representação e a experiência da doença: princípios para a pesquisa qualitativa em saúde. In: Caminhos do pensamento: epistemologia e método. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2002, p.109 – 132.
MILAN, Letícia Portella. Escrita de si e diários: construções do gênero diante de paradigmas socioculturais. Revista Brasileira de História e Ciências. Vol.8. nº 15, 2016.
WADI, Yonissa Marmitt. “Estou no Hospício, Deus”: problematizações sobre a loucura, o hospício e a psiquiatria no diário de Maura Lopes Cançado (Brasil, 1959-1960). Asclepio Revista de História de la Medicina y la Ciencia, vol 69, no2, 2017.

10 comentários:

  1. Ficou evidente em seu texto que para Maura Lopes o exercício da escrita no hospício seria uma forma de não perder as referências de si, ou de se conectar consigo em um espaço que contribuiu para o despojamento do eu. Gostaria de saber um pouco mais dos significados/relações de suas crises depressivas que foi citado no texto, pois ela me pareceu um personagem que fugia das imagens da mulher passiva, embora seja evidente ter sentido as dores e dificuldades do ser mulher em sua época.

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    1. Geane Caroline Wiltemburg21 de maio de 2020 às 01:15

      Boa noite, Thiago! Como vai? Muito obrigada por sua leitura. Em seus relatos, Maura aponta crises depressivas e também loucura, irracionalidade, oligofrenia, demência, esquizofrenia, paranoia, epilepsia, personalidade psicopática, psicose maníaco-depressiva e outros. Normalmente não explica em que momentos se observa dessa forma ou aborda quais sintomas embasariam os diagnósticos. O que pudemos observar, conforme mencionado pela minha colega Bruna, foi a presença perene do sentimento de não pertencimento, de não enquadramento. Ao comentar as primeiras crises depressivas, ela comenta sobre como a sociedade observava, estigmatizava a mulher separada. Ao explicar o internamento voluntário escreve que haveria, fora dos muros do hospício, uma grande incompreensão. Atenciosamente, Geane Caroline Wiltemburg

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  2. O exercício da escrita pelos internos em hospícios é de suma importância para entendermos o contexto das internações e os flagelos que este procedimento causa nos pacientes e como se relativa com as questões de poder! Parabéns pelo seu artigo!
    Lidiane Álvares Mendes

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    1. Obrigada Lidiane Álvares Mendes!
      Eu e a Geane ficamos felizes que tenha gostado do trabalho. A obra autobiográfica da Maura é uma fonte muita rica para entendermos a intersecção entre gênero, classe e loucura, ainda mais num contexto anterior à reforma psiquiátrica. É interessante ver os mecanismos criados por cada sujeito para manter-se ativo num contexto que visa, de todas as formas, impor-lhe o silêncio e apagar as diferenças

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  3. Olá Thiago! Tudo bem? Realmente, conforme eu e minha colega (Geane) analisamos, Maura fugia da figura passiva de mulher que era o padrão da época. Acreditamos que a escrita de si no contexto da hospitalização significava tanto manter ativa uma memória de quem se era quanto (e talvez isso seja mais significativo) atribuir um sentido em relação a tudo o que estava acontecendo e sentir-se ativa, manter algum controle sobre a construção da imagem de si num contexto em que ela era despossuída de controle. Nesse sentido, se entendi sua pergunta, os sentimentos de solitude estão relacionados ao reconhecimento de não enquadrar-se, não sentir que possui um lugar para si e, conforme entende, isso desde a infância, ainda que amada pela família. Ela cria um "eu" e "eles", ao mesmo tempo que observa que foi inserida nessa dicotomia
    Bruna Alves Lopes

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  4. Parabenizo as autoras pelo texto! Muito instigante e com tema relevante. Contudo, fiquei com duas dúvidas pontuais e gostaria de colocá-las aqui: 1) O texto aponta que a primeira internação dela foi em 1949, por depressão. Minha questão é: isso consta na documentação? Pergunto pq nesse período era mais comum o termo "melancolia" e tal expressão englobava uma série de doenças mentais e estados de ansiedade. Isso faz diferença. Não tenho certeza se na década de 40 a palavra depressão era usada.QUESTÃO 02: o texto informa rapidamente sobre o abandono de um filho. Gostaria de saber se as autoras tem mais alguma informação sobre isso. Atenciosamente, Georgiane Garabely Heil Vázquez

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    1. Boa noite, Georgiane! Como vai? Ficamos felizes com a sua leitura. Muito obrigada. Respondendo sua primeira dúvida, termos como “crises depressivas”, “depressão” entre outros constam nos relatos de Maura. Por exemplo: “[...] Quase sempre pensava em matar-me.[...] Era acometida de crises depressivas que duravam dias e dias [...] (Cançado, p. 65). O termo depressão, tal qual conhecemos, é relativamente recente, data do séc. XIX, embora seja com Kraepelin, em 1921, que utiliza-se como uma categoria ampla referindo-se à “estados depressivos”. No caso do uso realizado por Maura vemos que, em muitos casos, na tentativa de atribuir um sentido à sua história o termo aparece quase como um sintoma ou uma descrição de situações em que perdia o ânimo ou o que considerava controle das emoções. Cabe lembrarmos que ela recebeu vários diagnósticos ao longo da vida, de mal comicial, passando por psicoce maníaco depressiva e esquizofrenia, entre outros. Na internação abordada no livro, a questão do diagnóstico era debatida entre os profissionais que a atendiam. Acho importante mencionar também que embora a primeira internação tenha ocorrido na década de 40, o diário e a breve autobiografia são escritos nos anos de 59 e 60. Ao escrever sobre a experiência vivida e a verbalizar em forma narrativa, ela utiliza termos ouvidos e utilizados nesse período, no qual o DSM I (1952) era vigente.
      Sobre a segunda dúvida, aos 15 anos, ela era mãe e divorciada. Quem cuida da criança é a mãe dela, uma vez que Maura não se considerava apta a cuidar dele. Ela aborda a maternidade e lança questionamentos sobre ela e também sobre o casamento. No diário, menciona que, antes da internação, enviava presentes caros aos filho como forma de compensar a ausência. Comenta, também, que o nome de seu avião era uma homenagem ao filho, Cesarion Praxedes. Assim, a maternidade pode ser apontada como mais um elemento de distinção dela em relação às outras mulheres: uma vez que era divorciada e não cuidava de seu filho. Informações adquirida em entrevistas, como a de Carlos Heitor Cony à Folha de São Paulo dão conta de que, ainda que tivessem uma relação “distante”, mãe e filho mantiveram contato, ao menos até ela ser presa. Atenciosamente, Geane Caroline Wiltemburg

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  5. Parabéns as autoras o texto é instigante, deixou em mim a curiosidade de ler todo o livro, mas a minha pergunta se refere ao foto do diagnóstico de loucura,esse que erroneamente era aplicado as mulheres que questionavam e estavam a frente de seu tempo,sendo assim taxados por não se enquadrarem nos padrões pré estabelecido pela sociedade, os sentimentos relatados assemelha-se a uma profunda depressão,como explicar o fato de Maura ter ido voluntariamente se internar?O que poderia ter levado ela a preferir um ambiente manicomial para ficar? Talves ela com todo seu conhecimento escrevendo para colunas importantes nao sabia lidar com seus sentimentos perante o mundo dito "externo" e preferia se isolar dele?

    Lilian Daiane Both

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  6. Geane Caroline Wiltemburg22 de maio de 2020 às 15:55

    Boa tarde, Lidiane! Como vai? Agradecemos a leitura. O livro é fantástico e proporciona reflexões pertinentes. Vale a pena ler.
    Em relação aos seus apontamentos, nós não abordamos a noção de diagnóstico na discussão. Inicialmente por não termos elementos para isso (não tivemos acesso aos prontuários e discussões sobre o diagnóstico no período desse internamento), mas também devido ao objetivo ser analisar o que a Maura falava de si, como ela percebeu sua experiência de adoecimento e internamento e como a retratou em seu diário. Já sobre ela ter se internado voluntariamente, percebemos em seus escritos uma sensação de não acolhimento, de não pertencimento. Como comentei com o Thiago, ela escreve que havia, fora dos muros da instituição, uma grande incompreensão. Concordamos que existe a hipótese de que ela não saberia lidar com o mundo externo, assim como que a própria doença poderia ser um complicador nesse processo. Uma outra hipótese seria a de que no mundo institucional ela encontrava um lugar para si, fosse o de doente mental, louca, denunciante. Já no mundo externo, a percepção é a de pertencimento a um não lugar, uma inaptidão. Esses sentimentos podem ter auxiliado na opção pelo internamento. Atenciosamente, Geane Caroline Wiltemburg.

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