Thaylla Giovana Pereira da Silva e Jaqueline Ap. M. Zarbato


HISTÓRIA DAS MULHERES NEGRAS E SEU SABER/FAZER: REFLEXÕES E POSSIBILIDADE DIDÁTICAS NA HISTÓRIA ENSINADA



O presente artigo faz parte da pesquisa: Patrimônio histórico-cultural material e imaterial nas cidades de Mato Grosso do Sul e seu impacto histórico- cultural: Cultura regional e formação de um sistema de preservação a partir da educação patrimonial. No recorte da pesquisa, analiso a historicidade de mulheres negras e as concepções patrimoniais envolvidas nos discursos oficiais, que silenciam/negligenciam o saber/fazer feminino negro. Além disso, pontuamos realizar atividades nas escolas abordando a História das mulheres negras e seus saberes/fazeres culturais. Dessa forma, pontuamos como objetivo nesse artigo, apresentar as principais reflexões teóricas que nos orientam na análise sobre a história das mulheres negras, bem como das possibilidades de realizar aulas oficinas no Ensino Médio.

Analisamos os estereótipos atribuídos as mulheres negras escravas, relacionando a igualdade de gênero na lógica de trabalho e suas formas de resistências, descontruindo a perspectiva de que apenas fugas e violência foram utilizados para obter a liberdade no período escravocrata, enfatizando o papel fundamental que as mulheres negras exerceram no processo de abolição. 

A ideologia da feminilidade que direcionou historicamente a mulher a ser apenas dona de casa, esposa amável e mãe, não eram voltados a mulher negra/escrava.  Essas mulheres, que foram conhecidas por ser mucama, ama de leite, cozinheira da casa grande também tiveram importância cultural e relevância nos percursos históricos.  Mas, quando se tratava da mulher negra a produtividade estava acima de questões de gênero, que sofriam não somente a exploração da escravidão, mas o estrupo de seus corpos vindo de seus senhores. A postura dos senhores em relação às escravas era regida pela conveniência: quando era lucrativo explorá-las como se fossem homens, eram vistas como desprovidas de gênero; mas quando podiam ser exploradas, punidas e reprimidas de modos cabíveis apenas às mulheres, elas eram reduzidas exclusivamente à sua condição de fêmeas. [DAVIS. p 19, 2016] 

No contexto religioso e moral a valorização da maternidade foi afirmada como um papel social da mulher que era considerada um ser incompleto, fraco e levava uma vida sem sentido, mas ao tornar-se mãe a mulher essas circunstâncias mudariam e estaria mais próxima da divindade celestial, a educação materna também era regida pela igreja e alertavam sobre a formação intelectual das crianças “Os jornais católicos apontavam a infantilização do vocabulário e a convivência com os escravos como prejudiciais ao desenvolvimento correto do falar das crianças, por isso, recomendava-se às mães que afastassem os filhos da convivência “nociva” com escravos” [BROTTO p.7, 2010].
Entretanto, a exaltação da maternidade não se estendia as escravas que cada vez mais eram avaliadas por sua fertilidade e capacidade de ter quatorze filhos ou mais, gerando cada vez mais lucros para os senhores e comercialização de escravos, as mulheres negras não eram vistas como “mães” mas reprodutoras obrigadas a multiplicar, ter a oportunidade de criar seus filhos era um grande privilégio, pois desde muito cedo as crianças eram separadas de suas mães como animais podendo ser vendidos sem distinção de idade, “Enquanto muitas mães eram forçadas a deixar os bebês deitados no chão perto da área em que trabalhavam, outras se recusavam a deixá-los sozinhos e tentavam trabalhar normalmente com eles presos às costas” [DAVIS, p.21].

Como aponta Michele Perrot “As mulheres deixam poucos vestígios diretos, escritos e materiais. Seu acesso à escrita foi tardio. Suas produções domésticas são rapidamente consumidas, ou mais facilmente dispersas. São elas mesmas que destroem, apagam esses vestígios porque os julgam sem interesse. Esse silenciamento se dá em diferentes fontes históricas e, ainda mais sobre a história das mulheres negras no Brasil [PERROT. p.17, 2017] Somente nos anos 1990, tem-se a preocupação em dialogar sobre o gênero interseccional. Djamila Ribeiro [2018] destaca que a romantização da miscigenação no Brasil, contribui para a banalização da violência sexual.

Para Joana Maria Pedro, a luta do movimento das mulheres e do feminismo, na segunda onda, buscavam analisar a subordinação das mulheres, e destacar o espaço das mulheres, pois: “Mulheres negras, índias, mestiças, pobres, trabalhadoras, muitas delas feministas, reivindicaram uma “diferença” – dentro da diferença. Ou seja, a categoria “mulher”, que constituía uma identidade diferenciada da de “homem”, não era suficiente para explicá-las. Elas não consideravam que as reivindicações as incluíam. Não consideravam como fez Betty Friedan na “Mística Feminina”, que o trabalho fora do lar, à carreira, seria uma “libertação”. Estas mulheres há muito trabalhavam dentro e fora do lar. O trabalho fora do lar era para elas, apenas, uma fadiga a mais. Além disso, argumentavam, o trabalho “mal remunerado” que muitas mulheres brancas de camadas médias reivindicavam como forma de satisfação pessoal, poderia ser o emprego que faltava para seus filhos, maridos e pais. Todo este debate fez ver que não havia a “mulher”, mas sim as mais diversas “mulheres”, e que aquilo que formava a pauta de reivindicações de umas, não necessariamente formaria a pauta de outras. Afinal, as sociedades possuem as mais diversas formas de opressão, e o fato de ser uma mulher não a torna igual a todas as demais. Assim, a identidade de sexo não era suficiente para juntar as mulheres em torno de uma mesma luta. Isto fez com que a categoria “Mulher” passasse a ser substituída, em várias reivindicações, pela categoria “mulheres”, respeitando-se então o pressuposto das múltiplas” [PEDRO. p.77, 2005] 

Davis apresenta que o cenário social e cultural apresenta a desigualdade para essas mulheres, mesmo em diferentes períodos históricos, no espaço público: “As mulheres negras sempre trabalharam mais fora de casa do que suas irmãs brancas. O enorme espaço que o trabalho ocupa hoje na vida das mulheres negras reproduz um padrão estabelecido durante os primeiros anos da escravidão. Como escravas, essas mulheres tinham todos os outros aspectos de sua existência ofuscada pelo trabalho compulsório [DAVIS, p.17, 2016] Nesse sentido, percebemos que as mulheres negras desde o período da escravidão,  se apresentam como fundantes de suas histórias, defendiam sua família, resistiam ao assédio sexual, participavam e organizavam rebeliões, por terem acesso facilitado a casa grande conseguiam envenenar seus senhores e uniam-se as comunidades de escravos fugitivos.

Possibilidades e diálogos sobre a história das mulheres negras
A partir da seleção de fontes históricas (documentos, fotografias, esculturas, monumentos) destacar a representação feminina negra na sociedade brasileira, tendo o espaço histórico de Campo Grande/MS como um dos cenários de análise. Mas trabalhando com as projeções dessas fontes também em outras cidades, que possuem patrimônios culturais identificados como de mulheres negras. Essa dimensão se dá pela falta de fontes históricas, inclusive em manuais didáticos sobre a História das mulheres negras no Brasil, uma herança do movimento escravista “O movimento antiescravagista oferecia às mulheres de classe média uma oportunidade de provar seu valor de acordo com parâmetros que não estavam ligados a seus papéis como esposas e mães.” [DAVIS, p. 51, 2016]

Isso, segundo a autora, daria a consciência sobre os direitos das mulheres não incluía as mulheres brancas da classe trabalhadora e muito menos as mulheres negras. Nessa mesma perspectiva, analisando o feminismo negro norte-americano, dialoga sobre a importância da história das mulheres. Assim, segundo [CRENSHAW, p.174, 2002] aponta que “a garantia de que todas as mulheres sejam beneficiadas pela ampliação da proteção dos direitos humanos baseados no gênero exige que se dê atenção às várias formas pelas quais o gênero intersecta-se com uma gama de outras identidades e ao modo pelo qual essas intersecções contribuem para a vulnerabilidade particular de diferentes grupos de mulheres desconhecida e precisa, em última análise, ser construída a partir do zero.

Na educação básica, nos baseamos na Lei 9.394/96 [Diretrizes e Bases da Educação Nacional/ LDB] que estabelece os temas a serem abordados: sensibilidade, igualdade e identidade.  Ainda seguindo essa perspectiva apontadas pela UNESCO, há os eixos estruturadores da educação na sociedade contemporânea, entre eles: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a viver e aprender a ser.  Assim, segundo os art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. art. 32. IV – o fortalecimento dos vínculos de família, dos laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca em que se assenta a vida social.

Além disso, com a reestruturação do Ensino Médio, que a partir da BNCC irá pontuar temas a serem abordados no Ensino de História, refletimos sobre a importância de trabalhar em sala de aula com a História das mulheres negras, partindo de situações problema em que vivem os/as estudantes e pontuar as discussões em aulas oficinas. As aulas oficinas seguem a concepção teórico-metodológica de Isabel Barca, que define o conceito aula-oficina, são pautadas a partir de competências a serem desenvolvidas nos alunos, elas encontram-se nas principais propostas curriculares para o ensino básico e secundário de História. “I- É possível que as crianças compreendam a História de uma forma genuína, com algum grau de elaboração, se as tarefas e contextos concretos das situações em que forem apresentados tiverem significado para elas. II – Os conceitos históricos são compreendidos gradualmente, a partir da relação com os conceitos de senso comum que o sujeito experiência. O contexto cultural e as mídias são fontes de conhecimento que devem ser levadas em conta, como ponto de partida para a aprendizagem histórica. III – Quando o aluno procura explicações para uma situação do passado à luz da sua própria experiência revela já um esforço de compreensão histórica. Este nível de pensamento poderá ser mais elaborado do que aquele que assenta em frases estereotipadas, desprovidas de sentido humano. IV – O desenvolvimento do raciocínio histórico processa-se com oscilações e não de uma forma invariante. Tanto as crianças, como adolescentes e adultos poderão pensar de uma forma simplista, em determinadas situações, e de uma forma mais elaborada noutras. V – Interpretar o passado não significa apenas compreender uma versão acabada da História que é reproduzida no manual ou pelo professor. A interpretação do “contraditório’, isto é, da convergência de mensagens, é um princípio que integra o conhecimento histórico genuíno.” [BARCA, p.139, 2004] 

Assim, buscamos a partir do embasamento sobre a História das mulheres negras e seus saberes/fazeres e atrelar com as diretrizes curriculares do Ensino Médio, projetar dez [10] aulas oficinas com temas que podem aprofundar a produção do conhecimento histórico. Um exemplo de aula oficina: Escultura africana. Abaixo explicamos o processo de aula oficina

Turma:1º ano do Ensino Médio. Conceitos trabalhados: Democracia Racial, Empoderamento, Identidade Negra, representação cultural.


Fonte: Acervo Preservação/DPH/SMC. Chico Saragiotto./Mãe preta/Largo do Paisandú/SP

Texto: Membros do Clube 220, entidade que congregava agremiações negras do Estado de São Paulo, se empenharam na construção de um monumento à Mãe Preta em São Paulo, no começo dos anos 1950. A Câmara Municipal e os jornais Diário da Noite, Diário de São Paulo e Correio Paulistano debateram sobre o assunto. A discussão resultou em um projeto de autoria do Vereador Elias Shammas que, aprovado na Câmara, deu origem a um concurso público de maquetes para a construção do monumento, instituído pelo prefeito Jânio Quadros em 1953. O trabalho vencedor foi o de Júlio Guerra [Santo Amaro, SP, 1912 - São Paulo, 2001], dada sua simplicidade e realismo, conforme avaliação da comissão julgadora e da imprensa. Essas qualidades, no entanto, se transformaram em defeitos aos olhos do militante negro José Correia Leite. Os traços modernos da escultura não o agradaram, pois esperava ver a Mãe Preta imortalizada em linhas acadêmicas: mucama bonita e bem arrumada como costumavam ser as amas de leite, e não uma figura “deformada” como a do Paiçandu. A inauguração ocorreu em 23 de janeiro de 1955, como parte das comemorações de encerramento do IV Centenário da Cidade de São Paulo. A escolha do Largo do Paiçandu para acolher a homenagem à Mãe Preta se deveu à presença da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos e de ser aquele largo, desde a construção da igreja no começo do século XX, um ponto de referência para a comunidade afrodescendente de São Paulo. O bronze da Mãe Preta ganhou foros de entidade religiosa, integrando rituais católicos e afro-brasileiros. Tornou-se comum depositar velas e oferendas aos seus pés, como flores, bebidas, comidas e pedidos em pedacinhos de papel. Transformou-se em local privilegiado para as comemorações pela libertação dos escravos, no dia 13 de maio e, mais recentemente, também pelo Dia da Consciência Negra, em 20 de novembro. Manifestações artísticas e religiosas ocorrem ao redor da estátua da mulher negra que amamenta a criança branca, relembrando as amas de leite no período da escravidão. Em 2004, com base em pedido encaminhado pela Irmandade do Rosário dos Homens Pretos e da comunidade local, o monumento à Mãe Preta foi tombado pelo CONPRESP, reconhecendo seu valor cultural para a cidade de São Paulo. [Fonte: Seção Técnica de Levantamento e Pesquisa Divisão de Preservação / DPH]

Proposição da Aula: Iniciar à aula dialogando sobre o que representa o monumento, a representação feminina negra e trazer a explicação do escultor. Após esse momento inicial abrir para socialização perguntando se já viram monumentos/esculturas/ de mulheres negras.  Fazer uma pesquisa online e nos livros didáticos sobre as representações femininas negras a partir de diferentes patrimônios tangíveis e intangíveis.  Contemplar os grupos com textos/fontes históricas que apontam a importância das mulheres negras no Brasil. Fazer esquemas com cada grupo sobre a fonte histórica selecionada, após isso retomar as discussões e fazer a análise das fontes.

A partir das aulas oficinas, pontuamos a abordagem da História das mulheres negras e sua representatividade cultural, envolvendo as dimensões histórico-educativas. Focando na contribuição dessas mulheres em suas diferentes dimensões na sociedade brasileira.



Referências
Drª Jaqueline Aparecida Martins Zarbato é professora de História da UFMS e coordenadora do Grupo de estudos de ensino, mulheres e patrimônio [GEMMUP]
Discente Thaylla Giovana Pereira da Silva. Acadêmica de História – licenciatura da UFMS, é voluntária pelo projeto de iniciação científica [PIVC] no âmbito de educação patrimonial, mulheres e negritude.

BARCA, Isabel. Educação histórica: Uma nova área de investigação. Revista da faculdade de letras, 2004.
BROTTO, Renata Batista. Médicos e Padres: discursos sobre a maternidade no século XIX [1860-1870]. ANPUH. Rio de Janeiro, 2010.
CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. In: Revista Estudos Feministas, 2002, vol.10, n.1, p.174. Disponível em: https://goo.gl/83tXV1
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. São Paulo: Boitempo, 2016, p.17
Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História. São Paulo, v. 24, n. 1, p. 77-98, 2005.
LAGE, Lana; NADER, Maria Beatriz. Da legitimação à condenação social. IN:PINSKY, C. B.; PEDRO, J. M. [Orgs.]. Nova História das mulheres no Brasil. São Paulo: Contexto, 2014, p. 293.
PERROT, Michelle. Minha história das mulheres. São Paulo, 2017.
RIBEIRO, Djamila. Quem tem medo do feminismo negro? São Paulo. Companhia das letras, p.117, 2018.

4 comentários:

  1. Parabéns excelente o texto!

    Eu cheguei a ler o livro da Angela Davis (Mulheres, Raça e Classe).E o texto de fato é muito reflexível e tem um forte senso crítico, pelo menos para mim.

    Minha dúvida é, até quando as mulheres negras serão vistas como minorias? Por que no meu pensar, as mulheres negras são vistas com olhares de mulheres de casa e objeto sexual, me corrigi se eu estiver errado! Eu vejo tudo isso como uma classificação e como jovem negro me sinto privilegiado e ao mesmo tempo preocupado, por que penso nas minhas irmãs que não terão os mesmos direitos que eu em sociedade/mercado de trabalho.

    Akanny Oliveira Santos.

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    1. Fico feliz por ter se interessado! Bom,esse é um caminho árduo, a mulher negra é objetificada e vista e como lasciva, o processo para que sua imagem seja representada de forma coerente é lento, mas através do trabalho que estamos apresentando na academia tornando pautas como essa acessíveis a comunidade externa, lentamente as mulheres negras vão ocupando o espaço que lhe é de direito.

      - Thaylla Giovana Pereira da Silva

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  2. O texto é excelente. Minha pergunta vai para se há a possibilidade de incluir esse debate e a temática em turmas do ensino fundamental. Visando propor a discussão de um tema tão importante em faixa etárias anteriores.
    Francisca Kessione Mendonça Bezerra

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    1. Obrigada, fico feliz por ter gostado!
      Claro que existe a possibilidade, através de aulas e oficinas voltadas ao ensino de História e representatividade das mulheres negras na sociedade, o ensino fundamental é um divisor de águas na autoimagem de pessoas negras, pois é um dos primeiros ambientes de socialização, a imagem que lhes são atribuídas desde a infância perpassa durante boa parte de sua vida, trabalhar assuntos como esse no ensino básico ajuda a descontruir padrões de beleza que é sempre atribuídos a pessoas brancas com traços europeus.

      - Thaylla Giovana Pereira da Silva

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