Isabela Nogueira da Silva Grossi


OS ENCONTROS E OS DESENCONTROS DAS MULHERES



A História desde os seus primórdios foi dominada por homens conservadores, logo, o lugar das mulheres nessa ciência tradicionalista foi sendo inicialmente adquirido apenas no século XX. Atualmente, é notável que nesse campo foi raro encontrar presenças femininas vinculadas às pesquisas que eram desenvolvidas por historiadores e inclusive à própria História, já que as configurações acadêmicas e sociais vigentes eram excludentes e patriarcais. Além disso, os ditos autores clássicos, salvo raras exceções como o francês Jules Michelet, não as enxergavam como um objeto pertinente e digno de suas atenções e de seus estudos, expondo a parcialidade dessa ciência, bem como de seus profissionais (SCOTT, 1992), o que no presente, devido às mudanças na academia e na sociedade se dá de outra forma.

A memória, como a História e a historiografia, é sexuada (PERROT, 2005). A historiadora e professora francesa Michelle Perrot ao escrever o livro publicado em 2005, Mulheres ou os silêncios da história, rememorou vários momentos da história das mulheres, indo do século XIX ao XX mostrando as falhas no argumento de que essas nada teriam feito ou de que tudo teria sido realizado com o respaldo dos homens.

Hoje, com a enorme gama de conhecimento sobre o assunto, já se sabe que as mesmas, especialmente na transição do século XX para o século XXI, foram estimulando e encabeçando as suas próprias lutas com “características particulares, regionais e nacionais” (SCOTT, 1992, p. 67) provenientes de diferentes camadas sociais e múltiplas vertentes (SOIHET, 2011).

Em 1960 começou a ocorrer uma revisão histórica incentivada por marxistas, como Edward Palmer Thompson e como Josep Fontana, com o foco voltado para aqueles que foram excluídos de inúmeras pesquisas, os subalternizados, levando a histórias com novos personagens e ao preenchimento de lacunas na historiografia (Idem). É nesse contexto que o estudo do espaço privado surgiu, sendo possível a observação de uma micro história de categorias como a das mulheres, que antes de irem para o espaço público estavam extremamente ligadas ao lar, mostrando que o que acontecia no cenário privado deveria ser igualmente levado em conta e incluído dentro da História e da historiografia:

“A grande reviravolta da história nas últimas décadas, debruçando-se sobre temáticas e grupos sociais até então excluídos do seu interesse, contribui para o desenvolvimento de estudos sobre as mulheres. Fundamental, neste particular, é o vulto assumido pela história cultural, preocupada com as identidades coletivas de uma ampla variedade de grupos sociais: os operários, camponeses, escravos, as pessoas comuns.” (Idem, p. 263)

Outros profissionais da História se interessaram por esse conteúdo referente a grupos subalternizados. Não tardou para que, em meados da década de 1960, além das mulheres passarem a frequentar as universidades como alunas e como professoras, grupos de estudo e cursos concernentes ao tópico fossem programados para serem assistidos (SCOTT, 1992). Perrot, em seu livro Minha história das mulheres de 2006, fala acerca do Women’s Studies, iniciado nos Estados Unidos da América, e acerca de As mulheres têm uma história?, da Universidade de Paris VII na França (PERROT, 2017). A autora vai além, na sua obra de 2005, demonstrando como era difícil tratar da história das mulheres, pois a escassez das fontes e dos relatos minimamente confiáveis era tremenda: primeiro porque eram poucas as que liam e as que escreviam, tendo em vista que essas duas atividades eram proibidas para a maioria e, em diversas ocasiões, as mesmas destruíam o que foi produzido no silêncio e no isolamento das suas casas (PERROT, 2005); segundo pois as próprias pessoas que ocupavam cargos importantes, como:

“Os escrivães da história – administradores, policiais, juízes ou padres, contadores da ordem pública – tomam nota de muito pouco do que tem o traço das mulheres, categoria indistinta, destinada ao silêncio. Se o fazem (...) recorrem aos estereótipos mais conhecidos: mulheres vociferantes, megeras a partir do momento em que abrem a boca, histéricas, assim que começam a gesticular.” (Idem, p. 33)

Como já mencionado, o espaço privado era o local comum do sexo feminino e, dessa forma, a sociedade patriarcal pretendia que esse fosse invisibilizado, devendo ficar em silêncio sem ser reconhecido como indivíduo (PERROT, 2017), mostrando que tanto os seus traços privados quanto os seus resquícios de memória públicos eram majoritariamente desconsiderados.

Conforme Virginia Woolf, uma das mais significativas escritoras britânicas do século XX, com o preenchimento de brechas históricas com a história das mulheres, as verdades absolutas saem de jogo e dão lugar para novos campos de estudo, como o dos que eram excluídos e que se tornaram legítimos, indispensáveis, e que fornecem um equilíbrio histórico (SCOTT, 1992). Por isso, ao mesmo tempo em que as mulheres participaram da história elas foram, sempre e ao mesmo tempo, anuladas e excluídas dessa, fosse do espaço privado fosse do espaço público.

Às mulheres, nos confinamentos do seu lar e do seu quarto, eram delegadas, comumente, atividades relacionadas ao cuidado da casa, do marido e dos filhos. Além disso, em várias ocasiões serviam como um troféu para ser desfilado, como em um concurso de qual dos maridos possuía a melhor e a mais bela do recinto.

Embora por um longo tempo as atividades domésticas não tenham significado algo para os historiadores e para a sociedade, atualmente já se sabe que esse tipo de trabalho é tão crucial para o andamento da vida quanto qualquer outro realizado no cenário público. A grande questão é que, especialmente no passado, essa posição era imposta às mulheres e, como essas não tinham outras opções no meio do patriarcado, aceitavam-na com pouca resistência.

A frase da filósofa existencialista Simone de Beauvoir presente em O Segundo Sexo, “toda a história das mulheres foi feita pelos homens” (2016, p. 186), apesar de, hoje, poder ser relativizada, faz referência às mulheres como sendo o Outro que legitima a sua postura como submisso. Essa posição acarretou na demora da constituição de uma comunidade que viabilizasse a organização de um grupo com interesses em comum e com o objetivo de conquistá-los (Idem, p. 15). Pode-se dizer que esse atraso se deu pela concentração feminina no cenário privado, no qual raramente as mulheres se encontravam com outras ou promoviam eventos próprios, não sendo o suficiente para que formassem um grupo que obtivesse um ponto de encontro. Não tinham privacidade, então, para conversarem sobre as suas necessidades em comum, para compartilhar intimidades, para dialogar acerca dos defeitos dos seus maridos e, inclusive, dos abusos que muitas sofreram. Além disso, mesmo em suas casas, a palavra final era a do homem, porque o patriarcado propagava o seu reinado na família e no Estado:

“O século XIX levou a divisão das tarefas e a segregação sexual nos espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo procurou definir estritamente o lugar de cada um. Lugar das mulheres: a Maternidade e a Casa cercam-na por inteiro. A participação feminina no trabalho assalariado é temporária, cadenciada pelas necessidades da família, a qual comanda, remunerada com um salário de trocados, confinada às tarefas ditas não qualificadas, subordinadas e tecnologicamente específicas. “Ao homem a madeira e os metais. À mulher, a família e os tecidos”, diz um texto operário (1867).” (PERROT, 2017, p. 198)

As suas participações nos espaços públicos sempre foram abafadas, contudo, as mulheres faziam várias atividades nesses, mas aqueles que envolviam questões econômicas e políticas, assuntos “totalmente masculinos”, eram considerados como pertencentes aos homens e eram os mais importantes para a sociedade da época:

“Mas, grosso modo, o mundo público, sobretudo econômico e político, é destinado aos homens e é o mundo que conta. Esta definição dos papéis, clara e voluntarista, traduziu-se por uma retirada das mulheres de certos locais: a Bolsa, o Banco, os grandes mercados de negócios, o Parlamento, os clubes, círculos e cafés, grandes locais de sociabilidade masculina, e até mesmo as bibliotecas públicas.” (PERROT, 2005, p. 34)

As fábricas e os lavadouros são exemplos de espaços públicos onde as mulheres tinham uma participação ativa na Europa como um todo e especificamente na França, já que a movimentação feminina começou propriamente com a Revolução Francesa. No século XX, nesse país, as mulheres compunham ao menos 38% da população industrial, sendo as fábricas de papel e de tabaco duas das que mais consumiam a sua mão de obra, classificadas como um verdadeiro exército industrial reserva sem qualquer qualificação, com empregos flutuantes e com os salários bem mais baixos que os dos homens, ou seja, as mesmas sofriam duas vezes: pelo seu sexo e pela sua posição como operariado. O polo têxtil, por conseguinte, detinha 73% de todas as que eram contratadas pelas fábricas, pois esse trabalho requeria a princípio atividades que podiam ser feitas em domicílio, isto é, o estereótipo da costura se fazia presente na vida das mulheres como um hobby ou como uma tarefa genuína, fossem elas nobres ou proletárias (Idem).

Michelle Perrot (Idem) afirma que as mulheres faziam greves puramente femininas e que, também, participavam das que eram mistas estando em maior quantidade nessas, sendo as indústrias têxtil e de tabaco as que mais lhes davam motivo para protestos, chegando a se masculinizarem para que pudessem se envolver sem maiores problemas. Embora não tivessem uma consciência operária bem estruturada nesse período, clamavam por salários maiores e pela redução da jornada de trabalho para doze horas, por exemplo, buscando avisar às autoridades e aos seus patrões da realização das greves. Mesmo nessas situações mostravam traços de submissão, provenientes do patriarcado, que as faziam buscar apoio na legalização das suas manifestações que eram fornecidas, logo, pelos grandes homens da sociedade, os únicos capazes de ajudá-las no período, tendo em vista que, por suas vezes, os sindicatos pouco as amparavam. Muitas por serem católicas ou por serem protestantes, inclusive, tinham medo de desrespeitar os seus chefes ou outras pessoas nessas empreitadas, já que essa ação seria tida como um pecado. A sociedade já menosprezava as mulheres, as grevistas mais ainda e se essas fossem pecadoras eram mesmo rechaçadas.

Além disso, até a adaptação de toda a sociedade às máquinas, as mulheres participaram da luta ferrenha que foi travada contra a nova tecnologia, a responsável por abolir o trabalho tradicional com o qual todos estavam acostumados. Em vários momentos elas tomaram a frente dos embates para defender o que acreditavam, ou seja, que as máquinas não deveriam existir porque tomariam os postos dos seus maridos, tal qual os seus nas indústrias, chegando a destruí-las algumas vezes: a máquina de costura levou ao caos, pois apesar dos abusos que sofriam nas fábricas, essa tecnologia propagaria a sua servidão caseira e, nesse instante, se posicionaram contra a mesma (PERROT, 2017).

Os lavadouros, do XIX para o XX, eram utilizados por mulheres de classes subalternizadas para a lavagem das suas roupas e para a lavagem das roupas das mulheres das classes altas. Essa atividade era feita de acordo com o tempo que restava das suas outras obrigações, como os afazeres caseiros, o cuidado do marido e dos filhos e do emprego, se tivessem. Embora as vestimentas pudessem ser lavadas em qualquer local onde existisse água, os lavadouros cada vez mais foram sendo limitados e se tornaram mais organizados.

Aos olhos da sociedade patriarcal era necessário separar as mulheres, o que se deu, então, por compartimentos que inviabilizavam a conversa e a troca das suas intimidades. Desgostosas com a situação, essas acabaram boicotando esses lavadouros específicos que, logo, tiraram-nas do contato direto que mantinham com as suas companheiras e vizinhas, tendo em vista que as mesmas não iam para esse espaço público apenas para lavar roupas, mas sim para dialogar com as suas parceiras.

Esse ambiente era um dos mais democráticos que existiram no passado, no qual trocas de informações diversas aconteciam e relações múltiplas eram estabelecidas, com mulheres que não pertenciam à alta sociedade podendo viver tranquilamente, sem serem julgadas como, por exemplo, as mães solteiras, impróprias para a época – essas eram mal vistas, mas não nos lavadouros, onde existia “uma moral de mulheres, feita de fatalismo e pragmatismo, que protege as que “erram” (Idem, p. 244). Outrossim, além de se sentirem protegidas e confortáveis, percebendo que outras passavam por situações parecidas com as suas, experimentavam a liberdade. Apesar desses lugares funcionarem como uma espécie de escola que educava as mulheres, usados com essa finalidade pelas autoridades do período e por políticos para discipliná-las, foi a organização mais próxima e mais antiga da que atualmente existe com o feminismo. Os lavadouros funcionavam como um ponto de encontros das mulheres (Idem).

Um padrão pode ser observado nos locais públicos explicitados anteriormente. Todas as vezes em que as mulheres tentaram se manter nesses, como nas ruas das cidades, nas indústrias e nos lavadouros, essas foram repelidas, foi feito de tudo para reeducá-las, para que as mesmas retornassem para o espaço privado que na percepção dos homens, em contextos nos quais a dominação masculina sobre as mulheres vencia e prevalecia, era o local ao qual pertenciam e de onde não deveriam sair sem que lhes fosse permitido. As fábricas e os lavadouros, partindo da análise antropológica feita pelo etnólogo francês Marc Augé, seriam um não-lugar, um espaço que não foi consumado totalmente, mas que é habitável, móvel e que, no entanto, dura por alguns momentos, apenas brevemente (2009). É notável que as mulheres estiveram sempre penetrando por esses não-lugares, com a sua estadia sendo passageira, bem como a sua rebeldia e a sua liberdade, porque, segundo Augé, esses não são permanentes e sim transitórios.

Com a Primeira Guerra Mundial, contudo, aos poucos esse cenário foi modificado. Não havia outra opção senão a tomada dos lugares dos homens por parte das mulheres, mesmo que depois os mesmos retornassem, durante a ocorrência da Grande Guerra. Assim, uma organização feminina começou a surgir e culminou em reivindicações de fato, a partir do momento em que conjuntamente se conscientizaram acerca do que queriam conquistar, como a liberdade, tão passageira, que experimentaram nas greves e, principalmente, nos lavadouros. Os espaços públicos vão sendo apoderados pelas mulheres que vão construindo o que hoje é conhecido como as três ondas feministas, buscando os seus direitos públicos, políticos e trabalhistas, tal qual questões de saúde e de gênero.

Pode-se afirmar que as mulheres desenvolveram um sentimento de insatisfação, demonstrando que queriam manter a autonomia obtida ao longo da Primeira Grande Guerra, de modo que pudessem escolher onde queriam estar, isto é, no âmbito privado, no público ou em ambos. Essas romperam com um contexto no qual eram submissas, sob a orientação dos seus interesses em comum manifestados na sua associação, algo que, por séculos, como dissertou Simone de Beauvoir (2016), se mostrou inexistente devido às historicidades das conjunturas anteriores e que, atualmente, recebe o nome de feminismo.

Referências
Isabela Nogueira da Silva Grossi é graduada em licenciatura em História pelo Centro de Teologia e Humanidades da Universidade Católica de Petrópolis.

AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Lisboa: 90º, 2009.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios da história. São Paulo: EDUSC, 2005.
______. Minha história das mulheres. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2017.
______. Os excluídos da história: operários, mulheres e prisioneiros. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo: UNESP, 1992, p. 63-96.
SOIHET, Rachel. História das mulheres. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da história: ensaios de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 263-284.

2 comentários:

  1. Olá. Parabenizo pelo texto e gostaria de perguntar para a autora, em sua concepção, quais os principais impactos das pesquisas sobre mulheres e estudos de gênero para a historiografia brasileira. Atenciosamente, Georgiane Garabely Heil Vázquez

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    1. Olá Georgiane, muito obrigada pela sua pergunta!

      Na minha concepção, assim como ocorreu na historiografia de muitos outros países, esses novos trabalhos começaram a modificar a faceta da historiografia brasileira que, fazendo o uso da fala da autora Michelle Perrot, era sexuada, sendo até então baseada majoritariamente nos feitos dos homens. Com o surgimento dessas novas pesquisas, algumas lacunas da História foram sendo preenchidas e essa historiografia foi sendo mais aprofundada. Ainda temos um longo caminho para percorrer, mas essas questões se mostram extremamente eficazes para que essas personagens, com as suas respectivas lutas e histórias, atraiam olhares e gerem múltiplos interesses, inspirando novos grupos de estudo e de pesquisa, livros e monografias e congressos e palestras que façam referência a esses temáticas, culminando cada vez mais no aumento da produção de conteúdos voltados para a História das Mulheres, os estudos de gênero, dentre outros.

      Espero ter respondido à sua pergunta. Mais uma vez, obrigada por enviá-la.

      Isabela Nogueira da Silva Grossi

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