OS ENCONTROS E OS DESENCONTROS DAS MULHERES
A História desde os seus primórdios foi
dominada por homens conservadores, logo, o lugar das mulheres nessa ciência
tradicionalista foi sendo inicialmente adquirido apenas no século XX.
Atualmente, é notável que nesse campo foi raro encontrar presenças femininas vinculadas
às pesquisas que eram desenvolvidas por historiadores e inclusive à própria
História, já que as configurações acadêmicas e sociais vigentes eram
excludentes e patriarcais. Além disso, os ditos autores clássicos, salvo raras
exceções como o francês Jules Michelet, não as enxergavam como um objeto
pertinente e digno de suas atenções e de seus estudos, expondo a parcialidade
dessa ciência, bem como de seus profissionais (SCOTT, 1992), o que no presente,
devido às mudanças na academia e na sociedade se dá de outra forma.
A memória, como a História e a
historiografia, é sexuada (PERROT, 2005). A historiadora e professora francesa
Michelle Perrot ao escrever o livro publicado em 2005, Mulheres ou os silêncios
da história, rememorou vários momentos da história das mulheres, indo do século
XIX ao XX mostrando as falhas no argumento de que essas nada teriam feito ou de
que tudo teria sido realizado com o respaldo dos homens.
Hoje, com a enorme gama de conhecimento sobre
o assunto, já se sabe que as mesmas, especialmente na transição do século XX
para o século XXI, foram estimulando e encabeçando as suas próprias lutas com
“características particulares, regionais e nacionais” (SCOTT, 1992, p. 67)
provenientes de diferentes camadas sociais e múltiplas vertentes (SOIHET,
2011).
Em 1960 começou a ocorrer uma revisão
histórica incentivada por marxistas, como Edward Palmer Thompson e como Josep
Fontana, com o foco voltado para aqueles que foram excluídos de inúmeras
pesquisas, os subalternizados, levando a histórias com novos personagens e ao
preenchimento de lacunas na historiografia (Idem). É nesse contexto que o
estudo do espaço privado surgiu, sendo possível a observação de uma micro
história de categorias como a das mulheres, que antes de irem para o espaço público
estavam extremamente ligadas ao lar, mostrando que o que acontecia no cenário
privado deveria ser igualmente levado em conta e incluído dentro da História e
da historiografia:
“A
grande reviravolta da história nas últimas décadas, debruçando-se sobre temáticas
e grupos sociais até então excluídos do seu interesse, contribui para o
desenvolvimento de estudos sobre as mulheres. Fundamental, neste particular, é
o vulto assumido pela história cultural, preocupada com as identidades
coletivas de uma ampla variedade de grupos sociais: os operários, camponeses,
escravos, as pessoas comuns.” (Idem, p. 263)
Outros profissionais da História se
interessaram por esse conteúdo referente a grupos subalternizados. Não tardou
para que, em meados da década de 1960, além das mulheres passarem a frequentar
as universidades como alunas e como professoras, grupos de estudo e cursos
concernentes ao tópico fossem programados para serem assistidos (SCOTT, 1992).
Perrot, em seu livro Minha história das mulheres de 2006, fala acerca do
Women’s Studies, iniciado nos Estados Unidos da América, e acerca de As
mulheres têm uma história?, da Universidade de Paris VII na França (PERROT,
2017). A autora vai além, na sua obra de 2005, demonstrando como era difícil
tratar da história das mulheres, pois a escassez das fontes e dos relatos
minimamente confiáveis era tremenda: primeiro porque eram poucas as que liam e
as que escreviam, tendo em vista que essas duas atividades eram proibidas para
a maioria e, em diversas ocasiões, as mesmas destruíam o que foi produzido no
silêncio e no isolamento das suas casas (PERROT, 2005); segundo pois as
próprias pessoas que ocupavam cargos importantes, como:
“Os escrivães da história – administradores,
policiais, juízes ou padres, contadores da ordem pública – tomam nota de muito
pouco do que tem o traço das mulheres, categoria indistinta, destinada ao
silêncio. Se o fazem (...) recorrem aos estereótipos mais conhecidos: mulheres
vociferantes, megeras a partir do momento em que abrem a boca, histéricas, assim
que começam a gesticular.” (Idem, p. 33)
Como já mencionado, o espaço privado era o
local comum do sexo feminino e, dessa forma, a sociedade patriarcal pretendia
que esse fosse invisibilizado, devendo ficar em silêncio sem ser reconhecido
como indivíduo (PERROT, 2017), mostrando que tanto os seus traços privados
quanto os seus resquícios de memória públicos eram majoritariamente
desconsiderados.
Conforme Virginia Woolf, uma das mais
significativas escritoras britânicas do século XX, com o preenchimento de
brechas históricas com a história das mulheres, as verdades absolutas saem de
jogo e dão lugar para novos campos de estudo, como o dos que eram excluídos e
que se tornaram legítimos, indispensáveis, e que fornecem um equilíbrio
histórico (SCOTT, 1992). Por isso, ao mesmo tempo em que as mulheres
participaram da história elas foram, sempre e ao mesmo tempo, anuladas e
excluídas dessa, fosse do espaço privado fosse do espaço público.
Às mulheres, nos confinamentos do seu lar e
do seu quarto, eram delegadas, comumente, atividades relacionadas ao cuidado da
casa, do marido e dos filhos. Além disso, em várias ocasiões serviam como um
troféu para ser desfilado, como em um concurso de qual dos maridos possuía a
melhor e a mais bela do recinto.
Embora por um longo tempo as atividades
domésticas não tenham significado algo para os historiadores e para a
sociedade, atualmente já se sabe que esse tipo de trabalho é tão crucial para o
andamento da vida quanto qualquer outro realizado no cenário público. A grande
questão é que, especialmente no passado, essa posição era imposta às mulheres
e, como essas não tinham outras opções no meio do patriarcado, aceitavam-na com
pouca resistência.
A frase da filósofa existencialista Simone de
Beauvoir presente em O Segundo Sexo, “toda a história das mulheres foi feita
pelos homens” (2016, p. 186), apesar de, hoje, poder ser relativizada, faz
referência às mulheres como sendo o Outro que legitima a sua postura como
submisso. Essa posição acarretou na demora da constituição de uma comunidade
que viabilizasse a organização de um grupo com interesses em comum e com o
objetivo de conquistá-los (Idem, p. 15). Pode-se dizer que esse atraso se deu
pela concentração feminina no cenário privado, no qual raramente as mulheres se
encontravam com outras ou promoviam eventos próprios, não sendo o suficiente
para que formassem um grupo que obtivesse um ponto de encontro. Não tinham
privacidade, então, para conversarem sobre as suas necessidades em comum, para
compartilhar intimidades, para dialogar acerca dos defeitos dos seus maridos e,
inclusive, dos abusos que muitas sofreram. Além disso, mesmo em suas casas, a
palavra final era a do homem, porque o patriarcado propagava o seu reinado na
família e no Estado:
“O século XIX levou a divisão das tarefas e a
segregação sexual nos espaços ao seu ponto mais alto. Seu racionalismo procurou
definir estritamente o lugar de cada um. Lugar das mulheres: a Maternidade e a
Casa cercam-na por inteiro. A participação feminina no trabalho assalariado é temporária,
cadenciada pelas necessidades da família, a qual comanda, remunerada com um
salário de trocados, confinada às tarefas ditas não qualificadas, subordinadas
e tecnologicamente específicas. “Ao homem a madeira e os metais. À mulher, a
família e os tecidos”, diz um texto operário (1867).” (PERROT, 2017, p. 198)
As suas participações nos espaços públicos
sempre foram abafadas, contudo, as mulheres faziam várias atividades nesses,
mas aqueles que envolviam questões econômicas e políticas, assuntos “totalmente
masculinos”, eram considerados como pertencentes aos homens e eram os mais
importantes para a sociedade da época:
“Mas, grosso modo, o mundo público, sobretudo
econômico e político, é destinado aos homens e é o mundo que conta. Esta
definição dos papéis, clara e voluntarista, traduziu-se por uma retirada das
mulheres de certos locais: a Bolsa, o Banco, os grandes mercados de negócios, o
Parlamento, os clubes, círculos e cafés, grandes locais de sociabilidade
masculina, e até mesmo as bibliotecas públicas.” (PERROT, 2005, p. 34)
As fábricas e os lavadouros são exemplos de
espaços públicos onde as mulheres tinham uma participação ativa na Europa como
um todo e especificamente na França, já que a movimentação feminina começou
propriamente com a Revolução Francesa. No século XX, nesse país, as mulheres
compunham ao menos 38% da população industrial, sendo as fábricas de papel e de
tabaco duas das que mais consumiam a sua mão de obra, classificadas como um
verdadeiro exército industrial reserva sem qualquer qualificação, com empregos
flutuantes e com os salários bem mais baixos que os dos homens, ou seja, as
mesmas sofriam duas vezes: pelo seu sexo e pela sua posição como operariado. O
polo têxtil, por conseguinte, detinha 73% de todas as que eram contratadas
pelas fábricas, pois esse trabalho requeria a princípio atividades que podiam
ser feitas em domicílio, isto é, o estereótipo da costura se fazia presente na
vida das mulheres como um hobby ou como uma tarefa genuína, fossem elas nobres
ou proletárias (Idem).
Michelle Perrot (Idem) afirma que as mulheres
faziam greves puramente femininas e que, também, participavam das que eram
mistas estando em maior quantidade nessas, sendo as indústrias têxtil e de
tabaco as que mais lhes davam motivo para protestos, chegando a se
masculinizarem para que pudessem se envolver sem maiores problemas. Embora não
tivessem uma consciência operária bem estruturada nesse período, clamavam por
salários maiores e pela redução da jornada de trabalho para doze horas, por
exemplo, buscando avisar às autoridades e aos seus patrões da realização das
greves. Mesmo nessas situações mostravam traços de submissão, provenientes do
patriarcado, que as faziam buscar apoio na legalização das suas manifestações
que eram fornecidas, logo, pelos grandes homens da sociedade, os únicos capazes
de ajudá-las no período, tendo em vista que, por suas vezes, os sindicatos
pouco as amparavam. Muitas por serem católicas ou por serem protestantes,
inclusive, tinham medo de desrespeitar os seus chefes ou outras pessoas nessas
empreitadas, já que essa ação seria tida como um pecado. A sociedade já
menosprezava as mulheres, as grevistas mais ainda e se essas fossem pecadoras
eram mesmo rechaçadas.
Além disso, até a adaptação de toda a
sociedade às máquinas, as mulheres participaram da luta ferrenha que foi
travada contra a nova tecnologia, a responsável por abolir o trabalho
tradicional com o qual todos estavam acostumados. Em vários momentos elas
tomaram a frente dos embates para defender o que acreditavam, ou seja, que as
máquinas não deveriam existir porque tomariam os postos dos seus maridos, tal
qual os seus nas indústrias, chegando a destruí-las algumas vezes: a máquina de
costura levou ao caos, pois apesar dos abusos que sofriam nas fábricas, essa
tecnologia propagaria a sua servidão caseira e, nesse instante, se posicionaram
contra a mesma (PERROT, 2017).
Os lavadouros, do XIX para o XX, eram
utilizados por mulheres de classes subalternizadas para a lavagem das suas
roupas e para a lavagem das roupas das mulheres das classes altas. Essa
atividade era feita de acordo com o tempo que restava das suas outras
obrigações, como os afazeres caseiros, o cuidado do marido e dos filhos e do
emprego, se tivessem. Embora as vestimentas pudessem ser lavadas em qualquer
local onde existisse água, os lavadouros cada vez mais foram sendo limitados e
se tornaram mais organizados.
Aos olhos da sociedade patriarcal era
necessário separar as mulheres, o que se deu, então, por compartimentos que
inviabilizavam a conversa e a troca das suas intimidades. Desgostosas com a
situação, essas acabaram boicotando esses lavadouros específicos que, logo,
tiraram-nas do contato direto que mantinham com as suas companheiras e
vizinhas, tendo em vista que as mesmas não iam para esse espaço público apenas
para lavar roupas, mas sim para dialogar com as suas parceiras.
Esse ambiente era um dos mais democráticos
que existiram no passado, no qual trocas de informações diversas aconteciam e
relações múltiplas eram estabelecidas, com mulheres que não pertenciam à alta
sociedade podendo viver tranquilamente, sem serem julgadas como, por exemplo,
as mães solteiras, impróprias para a época – essas eram mal vistas, mas não nos
lavadouros, onde existia “uma moral de mulheres, feita de fatalismo e pragmatismo,
que protege as que “erram” (Idem, p. 244). Outrossim, além de se sentirem
protegidas e confortáveis, percebendo que outras passavam por situações
parecidas com as suas, experimentavam a liberdade. Apesar desses lugares
funcionarem como uma espécie de escola que educava as mulheres, usados com essa
finalidade pelas autoridades do período e por políticos para discipliná-las,
foi a organização mais próxima e mais antiga da que atualmente existe com o
feminismo. Os lavadouros funcionavam como um ponto de encontros das mulheres
(Idem).
Um padrão pode ser observado nos locais
públicos explicitados anteriormente. Todas as vezes em que as mulheres tentaram
se manter nesses, como nas ruas das cidades, nas indústrias e nos lavadouros,
essas foram repelidas, foi feito de tudo para reeducá-las, para que as mesmas
retornassem para o espaço privado que na percepção dos homens, em contextos nos
quais a dominação masculina sobre as mulheres vencia e prevalecia, era o local
ao qual pertenciam e de onde não deveriam sair sem que lhes fosse permitido. As
fábricas e os lavadouros, partindo da análise antropológica feita pelo etnólogo
francês Marc Augé, seriam um não-lugar, um espaço que não foi consumado
totalmente, mas que é habitável, móvel e que, no entanto, dura por alguns
momentos, apenas brevemente (2009). É notável que as mulheres estiveram sempre
penetrando por esses não-lugares, com a sua estadia sendo passageira, bem como
a sua rebeldia e a sua liberdade, porque, segundo Augé, esses não são
permanentes e sim transitórios.
Com a Primeira Guerra Mundial, contudo, aos
poucos esse cenário foi modificado. Não havia outra opção senão a tomada dos
lugares dos homens por parte das mulheres, mesmo que depois os mesmos
retornassem, durante a ocorrência da Grande Guerra. Assim, uma organização
feminina começou a surgir e culminou em reivindicações de fato, a partir do
momento em que conjuntamente se conscientizaram acerca do que queriam
conquistar, como a liberdade, tão passageira, que experimentaram nas greves e,
principalmente, nos lavadouros. Os espaços públicos vão sendo apoderados pelas
mulheres que vão construindo o que hoje é conhecido como as três ondas
feministas, buscando os seus direitos públicos, políticos e trabalhistas, tal
qual questões de saúde e de gênero.
Pode-se afirmar que as mulheres desenvolveram
um sentimento de insatisfação, demonstrando que queriam manter a autonomia
obtida ao longo da Primeira Grande Guerra, de modo que pudessem escolher onde
queriam estar, isto é, no âmbito privado, no público ou em ambos. Essas
romperam com um contexto no qual eram submissas, sob a orientação dos seus
interesses em comum manifestados na sua associação, algo que, por séculos, como
dissertou Simone de Beauvoir (2016), se mostrou inexistente devido às
historicidades das conjunturas anteriores e que, atualmente, recebe o nome de
feminismo.
Referências
Isabela Nogueira da Silva Grossi é graduada
em licenciatura em História pelo Centro de Teologia e Humanidades da
Universidade Católica de Petrópolis.
AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma
antropologia da sobremodernidade. Lisboa: 90º, 2009.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e
mitos. 3. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
PERROT, Michelle. As mulheres ou os silêncios
da história. São Paulo: EDUSC, 2005.
______. Minha história das mulheres. 2. ed.
São Paulo: Contexto, 2017.
______. Os excluídos da história: operários,
mulheres e prisioneiros. 8. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2017.
SCOTT, Joan. História das mulheres. In:
BURKE, Peter (org.). A escrita da história: novas perspectivas. São Paulo:
UNESP, 1992, p. 63-96.
SOIHET, Rachel. História das mulheres. In:
CARDOSO, Ciro Flamarion; VAINFAS, Ronaldo (org.). Domínios da história: ensaios
de teoria e metodologia. 2. ed. Rio de Janeiro: Elsevier, 2011, p. 263-284.
Olá. Parabenizo pelo texto e gostaria de perguntar para a autora, em sua concepção, quais os principais impactos das pesquisas sobre mulheres e estudos de gênero para a historiografia brasileira. Atenciosamente, Georgiane Garabely Heil Vázquez
ResponderExcluirOlá Georgiane, muito obrigada pela sua pergunta!
ExcluirNa minha concepção, assim como ocorreu na historiografia de muitos outros países, esses novos trabalhos começaram a modificar a faceta da historiografia brasileira que, fazendo o uso da fala da autora Michelle Perrot, era sexuada, sendo até então baseada majoritariamente nos feitos dos homens. Com o surgimento dessas novas pesquisas, algumas lacunas da História foram sendo preenchidas e essa historiografia foi sendo mais aprofundada. Ainda temos um longo caminho para percorrer, mas essas questões se mostram extremamente eficazes para que essas personagens, com as suas respectivas lutas e histórias, atraiam olhares e gerem múltiplos interesses, inspirando novos grupos de estudo e de pesquisa, livros e monografias e congressos e palestras que façam referência a esses temáticas, culminando cada vez mais no aumento da produção de conteúdos voltados para a História das Mulheres, os estudos de gênero, dentre outros.
Espero ter respondido à sua pergunta. Mais uma vez, obrigada por enviá-la.
Isabela Nogueira da Silva Grossi