QUANTO VALE A VIDA DE UMA
MULHER NA CHINA? UMA ANÁLISE DAS MEMÓRIAS DE OPRESSÃO PRESENTES NO LIVRO “AS
BOAS MULHERES DA CHINA”
É unanimidade dizer, entre os pesquisadores,
que a proclamação da República Popular na China, em 1949, fez com que o país
mergulhasse num contexto jamais visto em outros países. Embora suas raízes
tenham caráter marxista-leninista, possui características próprias, um
"socialismo à moda chinesa". A historiografia, grosso modo, divide o
período da liderança de Mao Zedong em três momentos: a repressão aos
direitistas, o Grande Salto para Frente e a Revolução Cultural. A Revolução
Cultural, período principal para a análise desta pesquisa, é entendida pelos
historiadores como tendo ocorrido entre 1966 e 1969. Entretanto, para a maioria
dos chineses [Shu, 2012], ela só terminou em 1976 — ano da morte de Mao Zedong.
A Revolução Cultural foi a resposta de Mao às
críticas que suas políticas anteriores haviam sofrido e, pouco a pouco, uma
onda de vandalismo tomou conta da China, tanto nas cidades quanto no campo. Em
abril de 1969, o Partido convocou seu IX Congresso, declarando oficialmente
“vitoriosa” a Revolução Cultural. Entretanto, “o povo chinês se refere ao
período de 1966 a 1976 como os ‘10 anos de grandes desastres’ [shi-nian
haojie], e na China, a Revolução Cultural é sinônimo de ‘grande tumulto’ e
‘grande caos’”. [SHU, 2012, p. 112] Estupros, violências físicas e
psicológicas, distúrbios mentais, assassinatos, perseguições e prisões são
alguns dos efeitos desta histeria que foram sentidos em todos os cantos da
China durante o período da Revolução, e são alguns dos traumas carregados até
hoje.
Neste cenário, há um silenciamento em relação
à história das mulheres e sua condição na China contemporânea. Os relatos
colhidos pela jornalista e escritora chinesa Xinran, expostos em As boas
mulheres da China concordam com este fato. O livro nos apresenta à uma
coletânea de quatorze relatos de mulheres chinesas, reunidos por Xinran ao
longo de quase uma década, entre 1989 e 1997, período em que a autora trabalhou
como apresentadora no programa de rádio Palavras na brisa noturna, situado na
cidade de Nanquim. Em seu programa, Xinran discutia aspectos da vida cotidiana
e procurava abrir um espaço para que as pessoas pudessem se sentir à vontade
para desabafar após anos de repressão política. Para esta pesquisa, escolheu-se
dois dos relatos apresentados pela autora em seu livro. Os relatos escolhidos
são: A menina que tinha uma mosca como animal de estimação, p.21–49 e A mulher
cujo casamento foi arranjado pela Revolução, p.134–144.
A
condição da mulher na China do século XX
Entender gênero como uma construção cultural
é entender que, a partir dele, "pode-se perceber a organização concreta e
simbólica da vida social e as conexões de poder nas relações entre os
sexos" [TORRÃO FILHO, 2005, p.136]. São essas construções sociais, e não o
determinismo biológico, que definem a desigualdade entre os sexos. As mulheres
não são:
"obedientes, castas, perfumosas e
caprichosamente enfeitadas já por natureza. Só podem conseguir essas graças,
sem as quais não lhes é dado desfrutar nenhuma das delícias da vida, mediante a
mais enfadonha disciplina”. [WOOLF, 1972 apud TORRÃO FILHO, 2005, p.139]
Além disso, a classificação de gênero sempre
obedece a uma hierarquia. Para Nolasco [1995, apud TORRÃO FILHO, 2005, p.140],
"alguns comportamentos são definidos pela cultura como sendo pertencentes
a um ou outro sexo, aos quais o homem e a mulher 'devem recalcar para serem
reconhecidos como homem e mulher'". Esta dicotomia, enraizada
culturalmente, encontra-se no cerne dos problemas de gênero na grande maioria
das sociedades e, no que diz respeito à China, ainda é uma questão atual. A sociedade
chinesa se estruturou a partir de uma visão confuciana que, desde o nascimento,
estabelecia o lugar que a mulher ocuparia no seio da família. Conforme Fisac
Badell [1996], a tradição cultural e filosófica chinesa não vê o ser humano
como indivíduo autônomo, mas sim como parte de uma sociedade comunitária e,
principalmente, membro de uma família, o que faz da mulher somente um objeto do
patrimônio familiar:
"[...] se estabelece o lugar que a
mulher ocupará no seio da família, desde o nascimento até o casamento, com
especificações a respeito de suas obrigações e direitos escassos. A partir de
então a sorte de qualquer garota estava nas mãos de sua família para arranjar
um bom casamento. Ao contrário de seus irmãos homens, a mulher não tinha o
direito de herdar a fortuna de seu pai e, no caso da morte de seu pai em tenra
idade, o primogênito assumia os direitos e deveres paternos. Com o casamento, a
mulher passava a pertencer à família do marido e rompia seus laços de
parentesco que se redefiniam em torno de seu novo lar [...]". [FISAC
BADELL, 1996, p.16, tradução nossa]
De fato, a partir da fundação da República
Popular da China em 1949, houve, de certa forma, alguns avanços em relação à
figura da mulher na sociedade:
"Abolindo as antigas leis do casamento,
promovendo a entrada das mulheres no mercado de trabalho, e ensejando sua
participação nos quadros políticos do Partido, Mao combateu intensamente as
tradições machistas do passado, alcançando um substancial sucesso nas áreas
mais urbanizadas e na educação". [BUENO, 2009]
Entretanto, "na China, os homens são
normalmente submissos à autoridade de três sistemas – o poder político, o poder
do clã, o poder religioso. Quanto às mulheres, estão, além disso, submissas à
autoridade dos homens ou o poder marital" [MAO ZEDONG apud BUENO, 2009].
Embora, na teoria, o socialismo visasse a igualdade entre homens e mulheres nas
atividades sociais e de produção, o peso dos costumes milenares chineses não
fora algo fácil de se dissipar.
A
menina que tinha uma mosca como animal de estimação
Hongxue [nome fictício], estuprada pelo pai
pela primeira vez aos 11 anos de idade. Dividia um aposento num dormitório
coletivo com o pai e o irmão mais novo. A história de Hongxue foi sabida por
Xinran através de cartas e folhas de diário que esta recebeu em seu programa de
rádio, em 1989. Estas folhas continham o selo e o endereço de um hospital na
província de Henan, onde Hongxue esteve internada durante a década de 1970. No
diário, Hongxue relatava o horror vivido por ela durante o tempo em que dividiu
o aposento com seu pai, que era militar, e sua luta para tentar afastar-se
dele. Para evitar uma aproximação com o pai ela começou a ficar doente
propositalmente, fazendo de suas idas ao hospital um mecanismo de defesa:
"No inverno, encharcava-me de água fria
e saía para o gelo e a neve. No outono, comia comida estragada. Uma vez, em
desespero, estendi o braço embaixo de um pedaço de ferro que estava caindo,
para cortar a mão esquerda na altura do pulso [...]. Nessa ocasião, ganhei
sessenta noites inteiras de segurança." Diário de Hongxue [XINRAN, 2003,
p.27]
No dia 21 de abril de 1975, Hongxue escreveu
sobre sua vontade em criar um filhote de mosca dentro do hospital, como animal
de estimação:
"No domingo passado não tive nenhum
tratamento intravenoso, então dormi bem, até ser despertada por uma sensação
suave na pele, um arrepio. [...] Era como se um par de mãos minúsculas me
acariciasse suavemente. Eu me senti muito grata àquele par de mãozinhas e quis
saber de quem eram. Abri os olhos e vi: era uma mosca! Que horror! Moscas são
cheias de germes e sujeira de esgoto! Mas eu não sabia que as patas de uma
mosca podem ter um toque tão suave e leve, ainda que sejam sujas". Diário
de Hongxue [XINRAN, 2003, p.32]
A partir deste contato, Hongxue começou a
criar um filhote de mosca, alimentando-o e o deixando num "ninho" de
gase em cima da mesa-de-cabeceira. Cuidava-o incansavelmente, com medo de que a
mosca fugisse ou fosse morta por algum funcionário, o que acabou acontecendo
certo dia; a mosquinha foi esmagada, sem querer por um enfermeiro do hospital.
Entretanto, Hongxue não enterrou a mosca, mas guardou-a na geladeira;
enterrá-la significava deixá-la partir, de modo que Hongxue preferiu manter sua
"companheira" por perto. A menina ansiava por uma família de verdade,
que lhe desse amor e segurança. O toque das patas da mosca, no entanto, fora
sua única forma de afago durante a vida.
As folhas finais do diário demonstram a
angústia de Hongxue em voltar para a casa de seu pai. O médico lhe avisara que
sua condição estava de estabilizando, de modo que teria alta em breve para se
recuperar em casa. Ao pensar em algum plano para continuar internada, Hongxue
acidentalmente caiu na escada da cantina do hospital e cortou o braço. Os
enfermeiros redobraram o cuidado com o ferimento por causa de sua saúde frágil,
que poderia facilmente desenvolver uma septicemia devido ao número de moscas no
hospital:
""Moscas são grandes portadoras de
doenças". As palavras da dra. Yu me deram uma ideia, que decidi
experimentar. Não me importo com as consequências. Até a morte é melhor do que
voltar para casa. Vou esmagar a mosca grande em cima do corte no meu
braço." Diário de Hongxue [XINRAN, 2003, p.48]
Junto com as folhas do diário, Xinran recebeu
também um certificado de óbito, datado de 11 de setembro de 1975. Hongxue
morreu de septicemia aos 17 anos de idade.
A
mulher cujo casamento foi arranjado pela Revolução
Neste capítulo, Xinran relata uma ligação que
recebeu na secretária eletrônica da rádio, de uma mulher cuja vida privada
estava longe de ser igual à pública. Anonimamente, a mulher, na casa dos 50
anos, contara à Xinran sua história de estupro, casamento forçado e
infelicidade:
"Eu não achava que houvesse tantas
histórias de mulheres, semelhantes, mas diferentes. [...] Você deve saber que é
um grande alívio para as mulheres dispor de um espaço para se expressarem sem
medo de acusações ou de reações negativas. É uma necessidade emocional, não
menos importante do que as nossas necessidades físicas." Mulher anônima
[XINRAN, 2003, p.135]
A mulher nascera numa família de pais
instruídos, que haviam estudado no exterior. Estudando durante a infância e
adolescência numa escola moderna, em estilo ocidental, ela sabia de seu
privilégio e sua sorte em gozar da liberdade que outras meninas chinesas da
época não tinham. Entretanto, apesar de ter sido criada numa família liberal,
aos 17 anos ela resolveu aderir à Revolução, ansiando por lançar-se num
empreendimento grandioso. Sua boa criação a fez destacar-se perante as outras
meninas, visto que ela sabia cantar, dançar, atuar e tocar música. No dia do
seu aniversário de 18 anos, a mulher foi então chamada ao escritório do líder
do regimento, que lhe atribuiu uma "missão". Ansiando por fazer parte
do Partido ela aceitou sem pensar, mesmo não sabendo qual seria sua missão
final. Fora então levada, no meio da noite, para o prédio do governo regional,
onde foi apresentada a um oficial de alta patente.
"Mais tarde, na mesma noite, fui
despertada por um homem subindo na cama. Aterrorizada, estava prestes a gritar
quando ele me tapou a boca com a mão e disse, em voz baixa: "Xiu, não
perturbe o repouso dos outros camaradas. Esta é a sua missão". [...] A voz
dura era do oficial que eu tinha conhecido ao chegar. Não tive forças para me
defender, nem saberia como. Só pude chorar. No dia seguinte, o Partido me
informou que, à noite, realizaria uma festa simples para celebrar o nosso
casamento. Aquele oficial é o meu marido até hoje". Mulher anônima
[XINRAN, 2003, p.143]
Aos olhos dos outros, a mulher tinha tudo o
que poderia desejar: um marido ocupando um cargo importante no governo, dois
filhos bem-sucedidos e uma casa grande, confortável e moderna. Entretanto, a
mulher relatou não haver comunicação de verdade na família. "Quando
estamos só nós, tudo o que se ouve são os ruídos da existência animal: comer,
beber e ir ao banheiro". [XINRAN, 2003, p.136]
Xinran não pôde comentar sobre este relato
durante seu programa de rádio. Ao pedir permissão às autoridades para transmitir
a história, estes recusaram, alegando que seria prejudicial à imagem dos
dirigentes do Partido.
O primeiro relato escolhido para esta
pesquisa, A menina que tinha uma mosca como animal de estimação (p.21–49),
evidencia o machismo e a opressão sofridos por uma adolescente durante a década
de 1970. Seu pai, além dos abusos sexuais, também a agredia psicologicamente.
Em uma das passagens do livro, em seu diário, Hongxue escreveu que: "se eu
contasse para alguém, seria criticada em público e teria que desfilar pelas
ruas com palha na cabeça, porque eu já era o que chamavam de "um sapato
usado" [p.25]. A partir deste trecho, pode-se analisar o controle da
mulher por parte da figura masculina. A mulher, enquanto um ser carregado de
"feminilidade", deve manter sua "pureza" até o casamento.
No caso de Hongxue, a humilhação se daria ao fato de que não arranjaria um bom
casamento caso sua "impureza" viesse à tona. Deste modo, havia um
controle psicológico por parte de seu pai, que usava destas questões culturais
como forma de domínio.
Nas páginas 25 e 26, presente indiretamente
no relato, percebe-se como eram os dormitórios na época da Revolução Cultural.
A divisão era feita por famílias, que normalmente possuíam uma única peça. No
dormitório ao lado, outra família alojava-se:
"Pus um cadeado na porta do quarto, mas
ele não se importava de acordar todos os vizinhos e batia até que eu abrisse.
Às vezes enganava as outras pessoas no dormitório e elas o ajudavam a forçar a
minha porta, ou então dizia que precisava entrar pela janela para pegar alguma
coisa porque eu tinha o sono muito pesado. Outras vezes era meu irmão quem o
ajudava, sem entender o que fazia. Assim, trancasse a porta ou não, ele entrava
no meu quarto, em plena vista de todos”. Diário de Hongxue [XINRAN, 2003,
p.25–26]
Não houve, a partir deste relato, qualquer
desconfiança por parte dos vizinhos em relação ao que acontecia dentro do
dormitório. O pai, por ser homem e, consequentemente, exercer sua autoridade,
não foi vítima de contestação. A página 27 traz à tona uma parte da carta de
Hongxue, onde ela relata ter contado a verdade a sua mãe.
"Eu não aguentava mais e contei a
verdade à minha mãe. Vi que ela ficou terrivelmente perturbada. Mas, poucas
horas depois, a minha "sensata" mãe me disse: ‘Pela segurança da
família toda, você vai ter que suportar isso. Caso contrário, o que é que nós
todos vamos fazer?’” Diário de Hongxue [XINRAN, 2003, p.27]
Embora o divórcio fosse politicamente aceito,
moralmente a prática ainda era vista com maus olhos pelos chineses. Conforme
Xinran [2003, p.249], "em unidades de trabalho estatal, praticamente tudo
o que é designado a uma família vai no nome do homem". Divorciar-se seria
a ruína da família, moral e financeiramente, mesmo que a mãe de Hongxue tivesse
um emprego. Ademais, "os casais precisavam da autorização de seus
empregadores para se divorciar [...] quando as enormes estatais se encarregavam
de amparar seus funcionários até a morte e a dedicação ao partido era
considerada como mais importante que os dramas individuais." [TREVISAN,
2006, p.51]
A comoção do relato se dá com o fato da morte
de Hongxue, aos 17 anos, vítima de septicemia. Com isso, pensamos em como a
falta de voz e apoio referidas às mulheres vítimas de abuso causam atitudes
extremas. Este caso veio à tona somente no ano de 1989, quando Xinran recebeu
as folhas de seu diário. Entretanto, trinta anos separam as datações dos
escritos de Hongxue, da década de 1970, com a publicação do livro de Xinran, em
2002. E a estes trinta anos, soma-se a certeza de que a violência sofrida por
Hongxue não se trata de um caso isolado.
O segundo relato analisado, A mulher cujo
casamento foi arranjado pela Revolução (p.134–144), traz à tona a situação do
casamento arranjado, prática comum na China ainda nos dias atuais. Contrariando
a crença de que apenas mulheres "sem instrução" são vítimas de
opressão, este relato expõe a infelicidade de uma mulher que, à época do
relato, nos anos 1990, estava na casa dos 50 anos, e que havia tido uma
infância privilegiada em relação às outras meninas de sua época. Entretanto,
aos 17 anos, após resolver aderir à Revolução contra a vontade de seus pais
liberais, foi dada em casamento a um oficial de alta patente do Partido. Xinran
[2003] analisa que esta era uma prática comum. "Muitos homens que aderiram
à Revolução deixaram mulher e filhos para trás, a fim de seguir o Partido.
Quando atingiram posições graduadas, o Partido lhes deu uma nova esposa".
"A maioria das novas esposas eram
estudantes que acreditavam fervorosamente no Partido Comunista e idolatravam os
homens de fuzil no ombro. Muitas vinham de famílias abastadas e eram todas
cultas. Eram completamente diferentes das primeiras esposas, que eram sobretudo
camponesas. O refinamento delas estimulava nos oficiais o desejo por novidade
[...]". [XINRAN, 2003, p.145]
Conforme o relato da mulher, desde o começo
do casamento a relação foi puramente uma questão sexual e moral. Sua função
como esposa, para o marido, era servir como prova de sua "simplicidade,
diligência e caráter correto", para que este pudesse passar a ocupar um
cargo mais alto. "Para o meu marido, a carreira é tudo; as mulheres
satisfazem apenas uma necessidade física, mais nada. Ele costuma dizer:
"Se você não usa a mulher, para que se dar ao trabalho de tê-la?" [XINRAN,
2003, p.143]
"[...] O novo governo se viu diante do
problema de decidir o que fazer com as primeiras esposas de seus líderes.
Muitas delas, casadas com homens que agora ocupavam altos cargos, foram para
Pequim com os filhos, na esperança de encontrar o marido. [...] Os funcionários
tinham constituído nova família com as novas esposas: que esposa e que filhos
seriam repudiados, e quais seriam conservados? Não havia lei alguma em que
basear uma decisão". [XINRAN, 2003, p.145–146]
Obviamente, as segundas esposas — cultas —
eram agora as esposas oficiais. A solução encontrada pelo Partido foi a
indenização vitalícia e o reconhecimento de alguns direitos especiais para as
primeiras esposas, de modo que estas se encontrassem, então, sob a proteção do
governo e não fossem censuradas por suas aldeias. A ideia do divórcio ou de ser
uma "mulher usada", como mencionado anteriormente, era algo alvo de
humilhações, de modo que essa "proteção" visava amparar socialmente
estas mulheres abandonadas. O cumprimento dessas regras foi efetivado
simplesmente pelo fato de que as primeiras esposas mal as compreendiam: “essas
mulheres analfabetas, que não sabiam ler nem os ideogramas mais simples, só
entendiam uma coisa: pertenciam aos homens que lhes tinham levantado o véu e
que as transformaram de meninas em esposas”. [XINRAN, 2003, p.146]
A partir deste relato, percebe-se duas
"categorias" de esposas infelizes: as camponesas, que foram
abandonadas por seus maridos, e as novas esposas, que mesmo tendo, aos olhos
dos outros, tudo o que uma mulher poderia querer em termos de conforto e
estabilidade, se encontravam apenas na posição de "esposas", e não de
mulheres humanas, dotadas de sentimentos e vontades próprias.
Considerações
finais
Usar a literatura como fonte histórica nos
permite trabalhar com o conceito de verossimilhança. Os relatos recontados por
Xinran servem como representação de uma China real, e trazem à tona a realidade
vivida por uma sociedade que se encontra em constante transformação. No que diz
respeito às mulheres, percebe-se que a teoria é diferente da prática. Mesmo uma
política significativa como a de Mao, que visava a igualdade de gênero, não
fora o suficiente pra culminar com o milenarismo dos costumes chineses. A
partir desta pesquisa, considera-se um equívoco pensar a China como
igualitária. As políticas inclusivas de Mao alcançaram relativo sucesso,
principalmente nas áreas urbanas, mas não transformaram, nem de longe, a China
num país igualitário.
Por fim, ao analisar a representação da
mulher chinesa a partir dos relatos presentes no livro, procurou-se indagar
qual o impacto dos antecedentes culturais na vida destas mulheres modernas, bem
como as consequências a curto e longo prazo de uma tradição baseada em relações
de poder. Nesta perspectiva, buscou-se compreender como a tradição, ainda tão
enraizada no seio da China moderna, teve um papel tão importante numa sociedade
que, a partir de 1949, procurava romper com as tradições confucionistas em nome
da modernidade.
Referências
Bettina Pinheiro Martins é bacharel em
História pela Universidade Federal de Pelotas e mestranda em História pela
Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
BUENO, André. A mulher na China. Cem textos
de História Chinesa, Chinologia: 2009. Disponível em:
<http://chinologia.blogspot.com.br/2009/08/mulher-na-china.html>.
____________. Para uma história da Mulher na
China. Sinografia: 2008. Disponível em:
<http://sinografia.blogspot.com.br/2008/04/para-uma-historiada-mulher-na-china.html>.
FISAC BADELL,
Taciana: El outro sexo del dragón. Mujeres, literatura y sociedad en China. 1.
ed. Madrid: Narcea Ediciones, 1996.
PINHEIRO-MACHADO, Rosana. China: passado e
presente. 1. ed. Porto Alegre: Artes & Ofícios, 2013.
SHU, Chang-sheng. A História da China Popular
no Século XX. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2012. v. 1. 204 p.
TORRÃO FILHO, A. Uma questão de gênero: onde
o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos Pagu (UNICAMP), Campinas, v. 24,
n.jul./dez., p. 127–152, 2005.
TREVISAN, Cláudia. China: o renascimento do
Império. São Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2006.
XINRAN, As boas mulheres da China: vozes
ocultas. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, 283 p.
Você menciona que as tradições milenares contribuíram para que as mulheres recebessem esse tratamento, apesar de ações que incentivavam uma espécie de mudança no tratamento para com as mulheres, embora num sentido estrito. Gostaria de saber se você tem alguma informação sobre as reações que este livro (As Boas Mulheres da China) trouxe ao ser publicado e também qual seria a posição da mulher na China de hoje, se aconteceram mudanças significativas.
ResponderExcluirParabéns pelo texto.
Assinado: Milena Calikoski
Bom dia Milena, agradeço tua pergunta.
ExcluirSim, a sociedade chinesa foi moldada a partir de uma visão confuciana, que de certa forma institucionalizou a subordinação das mulheres. Alguns poemas confucianos que datam do século V a.C já delimitavam o papel que estas mulheres teriam no âmbito social e familiar. Mao Zedong, no geral, visava modernizar uma China que estava “parada no tempo”, e o rompimento com as tradições confucianas foi uma de suas políticas. Em relação à tua pergunta, a própria autora menciona que, na época em que ela teve contato com os relatos (entre 1989 e 1997), publicá-los na China seria impensável e ela poderia ir presa caso o fizesse. Xinran publicou o livro em Londres, onde mora desde 1997. Atualmente, a posição da mulher na China é bem diferente, embora algumas tradições antigas ainda se mantenham em menor grau. A China começou a se “abrir” pro Ocidente e pro mundo em geral apenas no final da década de 80 e, desde então, as mulheres estão cada vez mais inseridas no mercado de trabalho, têm mais liberdade sexual e acesso a educação. Casamentos arranjados pela família ainda são comuns, mesmo que em menor grau. Entretanto, como os chineses têm cada vez mais escolhido seus parceiros, estes matrimônios estão sendo cada vez menos frequentes. Se compararmos com as décadas anteriores de 60 e 70, a mudança foi enorme. Entretanto, eu acredito que há muito para melhorar em relação a tratamento dado às mulheres, tanto na China quanto no Ocidente.
Obrigada pelo interesse!
Bettina Pinheiro Martins
Primeiramente, gostaria de parabenizar Bettina Pinheiro Martins pelo belo texto, por trazer um tópico que além de falar de uma realidade em outro país também fala do nosso, claro que com suas diferenças, mas com o tema do patriarcado em comum. A partir do relato “A menina que tinha uma mosca como animal de estimação”, seria possível, claro que em suas devidas proporções fazer uma comparação do patriarcado descrito no relato, de pais que creem que suas filhas são sua propriedade com o Brasil?
ResponderExcluirAmanda da Silva Neto
Oi Amanda, agradeço tua pergunta!
ExcluirSim, eu vejo tudo correlacionado. Devemos tomar cuidado ao estudar o Oriente, já que nós, como ocidentais, estamos carregados de preconceitos e visões eurocêntricas. Entretanto, apesar das diferenças culturais, o patriarcado sempre têm a mesma essência. A mulher, no geral, é vista como um objeto, seja por parte da sociedade, do Estado, do pai ou do marido. Claro que, no que diz respeito à China, os abusos sofridos pelas mulheres (e, particularmente, pela menina Hongxue do relato) tinham o “respaldo” da tradição confuciana, que os normalizava.
Obrigada pelo interesse no meu trabalho.
Bettina Pinheiro Martins
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirObservando do nosso lugar, parece ser tão cruel pedir para a filha aguentar ser estuprada pelo próprio pai, e por isso, gostaria de elogiar a autora por abordar também a situação da mãe de Hongxue, que nos faz perceber que todas as mulheres são oprimidas, mesmo que de formas diferentes. Minha dúvida é sobre essa indenização vitalícia e os outros direitos que as primeiras esposas dos oficiais do Partido Comunista conseguiram, elas foram conquistadas a partir de reivindicações e protestos dessas próprias camponesas? Houveram tentativas de silenciamento dessas mulheres camponesas?
ResponderExcluirAna Claudia Pereira Mota
Oi Ana! Agradeço tua pergunta.
ExcluirÉ verdade. Apesar do relato ter ocorrido nos anos 70, mesmo se a data não tivesse sido exposta pela autora, ainda saberíamos que não se trata de uma violência distante da nossa realidade, visto que estas situações ocorrem diariamente com as mulheres, seja no Oriente ou no Ocidente. Em relação à tua pergunta, eu não tenho conhecimento a respeito de nenhum tipo de protesto ou reivindicação por parte destas mulheres camponesas. A “indenização” que elas receberam foi para resolver um dilema que se formou a partir desta situação: estas mulheres abandonadas iam até a cidade, com seus filhos no colo, atrás dos maridos, que já ocupavam altas posições no Partido e já estavam casados com outras mulheres. Entretanto, a política do governo visava a igualdade sexual e a monogamia, e não havia uma lei que servisse de base. A solução encontrada foi então esta indenização (uma quantia bem pequena) e uma “proteção” política, digamos assim, visto que, numa situação normal, estas mulheres e seus filhos sem pai sofreriam retalhação de suas comunidades. Entretanto, com esta proteção, os aldeões não ousariam censurá-las. Creio que a falta de protestos tenha se dado pelo simples fato destas mulheres não entenderem muito bem o que tinha acontecido. Não eram mulheres instruídas, e apenas sabiam que eram casadas com aqueles homens, que foram desposadas por eles e que lhe deviam fidelidade. Com a indenização, elas apenas voltaram para casa e criaram seus filhos sozinhas.
Bettina Pinheiro Martins
Olá Bettina.
ResponderExcluirPrimeiramente parabéns pela análise e pelo texto todo. Li esse livro ano passado e achei ele muito interessante e ver que ele estava em uma comunicação me chamou atenção. Gostaria de saber por que você escolheu esses dois relatos (que eu acho muito pertinentes) diante de tantos outros (com histórias também muito pesadas)? E gostaria de saber também: na sua análise a história pessoal da Xinran, com pais presos na Revolução Cultural influenciou de alguma forma nas narrativas escolhidas? Digo isso porque eu senti um tom bastante crítico também em relação ao governo e como você bem colocou, entre teoria e prática.
Novamente parabéns!
Mayla Louise Grbeoge Montoia
Oi Mayla, bom dia! Agradeço tua pergunta e teu interesse pelo trabalho.
ExcluirEu escolhi estes dois relatos por vários motivos. Primeiro, porque o relato da Hongxue é o primeiro do livro, e quando eu o li pela primeira vez ainda não tinha muito contato com a temática, então não sabia o que esperar. Foi um misto de desespero e vontade de me aprofundar no tema, e foi daí que surgiu minha monografia e meus estudos acerca de China e gênero. Outro motivo pra eu ter escolhido estes dois relatos foi para mostrar que não importa a idade, nem posição social, nem grau de instrução, as opressões estão aí e acontecem com qualquer mulher, em maior ou menor grau. E sim, com certeza eu acho que a vivência da autora influenciou a visão da mesma sobre o governo e o Partido e durante todo o livro ela mantém uma posição crítica. Acredito que a escolha dela em expor estes relatos tenha se dado a partir do pensamento de mesma de “expor” uma China que ela considera incompreensiva. Como mencionei em outra pergunta que me fizeram, nós temos que ter muito cuidado ao analisar o Oriente, porque estamos enraizados de preconceitos e temos uma visão eurocêntrica das coisas. Além disso, também é preciso ter cuidado ao usar a literatura como fonte histórica, e devemos sempre atentar os aspectos socioculturais do autor. Como a literatura trabalha com a verossimilhança, ela não tem obrigação de reproduzir uma veracidade, cabendo a nós, pesquisadores, a reflexão e a reconstrução dos fatos representados.
Bettina Pinheiro Martins