Jeane Carla Oliveira de Melo


UMA HISTORIOGRAFIA DO ESQUECIMENTO: O MEMORICÍDIO E AS PRÁTICAS DE ESCRITURA HISTÓRICA DE MULHERES NO SÉCULO XIX



Este breve texto visa discutir a questão do memoricídio de autoria feminina nos oitocentos, trazendo casos exemplares de obras de cunho histórico produzidas por mulheres de letras do século XIX que foram sumariamente destruídas ao longo do tempo. Compreende-se que estes apagamentos não estão dissociados do gênero (SCOTT, 1995), isto é, tais opacidades ligam-se fundamentalmente às desiguais relações de poder na sociedade e ao pouco valor que é atribuído a produção literária feminina em detrimento da masculina. Deste modo, o termo memorícidio (DUARTE, 2019), utilizado pelas pesquisadoras de obras femininas soa bastante apropriado para dar conta dos processos de apagamento da presença literária feminina na história da historiografia brasileira.

A manutenção dos arquivos de mulheres intelectuais é ainda um imenso desafio para as instituições de guarda (SIMIONI & ELEUTÉRIO, 2018). Também é um desafio para as pesquisadoras e pesquisadores, que encontram inúmeras dificuldades ao lidar com a escassez de fontes sobre mulheres na história, sobretudo no que diz respeito à organização, catalogação e publicização dos impressos produzidos nos oitocentos.

Dito isto, tem-se o século XIX como ponto de partida da investigação por três deliberadas razões: a) pelo estabelecimento da imprensa régia em 1808; b) pelos movimentos iniciais de implementação da instrução pública feminina em 1827; c) por ser o século em que o primeiro conjunto de mulheres passa a publicar no país. Cabe assinalar que a produção letrada feminina oitocentista é bastante variada e se dá por meio de diversos gêneros literários e históricos. Contudo, essa produção é marcada pela irregularidade, pouco ou quase nenhum acolhimento destas mulheres autoras nos círculos intelectuais de suas épocas e o recebimento de críticas marcadas pela condescendência ou indiferença – o que pode ser compreendido pela junção sexo da autoria e preconceito com a escrita feminina. O campo intelectual oitocentista é, portanto, bastante árido para as mulheres escritoras (FAEDRICH, 2018).

Uma produção “perdida” no tempo ou o vilipêndio da memória feminina
Considerando que as autoras oitocentistas se aventuraram por diversos gêneros textuais, um deles ainda bem pouco explorado na pesquisa histórica é aquele que diz respeito a produção de memórias e biografias, de manuais didáticos de história, de romances históricos, de história religiosa, de práticas colecionistas, de ensaios e poemas históricos. Empreender uma investigação com este fim significa entender que mesmo ausentes do cânone e dos espaços de sagração intelectual como o IHGB – que poderia nomear quem seria considerado historiador ou não – as mulheres também participaram da produção do conhecimento histórico nos oitocentos, de um modo radicalmente diferente dos homens de letras e a partir de condições hierarquicamente distintas.

Ao produzirem variados bens culturais em formato de impressos, elas também forjaram e tematizaram narrativas sobre o passado. Ausentes de tudo que dizia respeito ao métier do historiador (arquivos, bibliotecas, fontes manuscritas e a possibilidade de fazerem viagens exploratórias, exposição dos produtos intelectuais entre os pares), grande parte das mulheres que escreveram textos históricos o fizeram mediante ‘pesquisas marginais’ em livros com uma circulação mais intensa e em alguns poucos documentos que poderiam ter acesso. Nesse sentido, é bastante provável que impossibilidade de frequentar arquivos fosse ‘burlada’ com o uso da imaginação histórica como método privilegiado.

Outro aspecto desta produção é o caráter particular que se dá ao passado, por meio da produção de memórias individuais (escrita de si) e biografias. Também a questão da instrução lhes permite pela primeira vez adentrarem no magistério e publicarem manuais escolares e deste ponto, produzir narrativas sobre o passado da nação que pudessem ser didatizadas e consumidas para um pequeno, mas crescente público escolar (MELO, 2017). Tais escritos, ao lançarem mão de um certo tipo de narrativa fundante do Brasil, também buscavam construir uma interpretação de país e dotar-lhe de uma identidade nacional – uma das questões mais candentes que desafiavam os intelectuais no século XIX.

Vale destacar que as mulheres de letras estavam bastante afinadas com este debate. A poesia e prosa indianistas compostas por nomes como Nísia Floresta (Lágrima de um Caeté, 1849), Ana Luísa Castro (Narcisa de Villar, 1859) e Maria Firmina dos Reis (Gupeva, 1861-2) são um bom termômetro para aferir a inserção delas nesse processo de reescrita da nação (SCHMIDT, 2019). É importante pontuar o quanto a escritora maranhense Maria Firmina avançou na contribuição sobre a questão nacional pois além de pensar a condição feminina, o fez articulado com reflexões sobre raça e abolicionismo em uma sociedade escravista (SILVA& FERNANDEZ, 2020). Merecem destaque os inúmeros estudos e o grande interesse que sua obra vem despertando em pesquisadores comprometidos com a reabilitação de sua memória e reinserção no cânone.

Para Bonnie Smith (2003), um modo útil de classificar o trabalho intelectual feminino na produção de discursos sobre o passado em um momento anterior à profissionalização da atividade dos historiadores é alcunhá-las como ‘historiadoras amadoras’. Essa definição abarca a gama de mulheres que produziram para um público variado, obras históricas feitas de um modo privado, criativo e artesanal, haja vista a restrição posta a elas de terem acesso aos documentos presentes nos arquivos, bibliotecas e instituições letradas. Mas também a referida conceituação denuncia a existência de uma espécie de feminilização da escrita histórica não-cientifica e, por tabela, uma masculinização da história enquanto ciência (DIAS, 2019).

Deste modo, a divisão do trabalho intelectual na história é generificada. As mulheres em sua maioria tinham que dar conta das sobrevivências materiais, dos filhos e demais familiares, das aulas (quando eram professoras), e ao mesmo tempo conviver com o olhar desabonador para suas aventuras intelectuais; de acordo com Smith (2003) a escrita das minorias de gênero e raciais são invariavelmente criações literárias atravessadas por traumas que se configuram na experiência de um viver subalterno.

Dessa safra de historiadoras amadoras brasileiras destacamos três autoras que tiveram seus escritos destruídos e obras consideradas perdidas. São elas: Rita Joana Sousa (manuscritos históricos), Maria Angélica Ribeiro (drama histórico para teatro), Rita Esteves Alves de Vasconcellos (biografia). Passemos agora a um breve exame de cada caso em particular.

Rita Joana de Sousa
Aqui iniciaremos não com uma autora oitocentista, mas apresentando notícias de uma mulher instruída da colônia. Nascida 1696 e morta precocemente em 1718 aos 22 anos, D. Rita Joana de Sousa foi natural de Olinda, Pernambuco. As informações a seu respeito são díspares e inconsistentes. Os primeiros relatos sobre a produção de D. Rita nos informam que ela produziu opúsculos filosóficos e históricos, contudo, nenhum dos seus manuscritos sobreviveu ao tempo. Convém ressaltar que no século XVIII não havia tipografias na colônia. Imagina-se que por esta razão, sua produção intelectual não tenha chegado a ser impressa nem mesmo na metrópole. Cerca de dezesseis anos após sua morte, o primeiro a mencioná-la em uma antologia de mulheres de letras foi o Padre Manuel Tavares, em 1734, quando publica em Lisboa o seu livro “Portugal illustrado pelo sexo feminino”. Mesmo sem ter fontes impressas (é difícil saber se ele teve contato com os manuscritos da autora ou apenas ouviu falar dela), Tavares pontua que D. Rita foi uma dedicada estudiosa da filosofia natural, da história da Espanha e França, bem como se dedicou a pintura.

A partir deste registro inicial, criou-se uma espécie de mito da mulher letrada em torno da figura de D. Rita. Varnhagen, Joaquim Manuel de Macedo, Inês Sabino e Sacramento Blake fazem parte do conjunto de escritores notórios que incluíram o nome de Rita Joana de Sousa em suas obras, acrescentando detalhes sobre sua biografia sem, contudo, apresentar qualquer fonte que pudessem comprová-los (VASCONCELLOS, 1999). De modo que, atualmente, a presença de D. Rita não pode mais ser mais analisada separada dessa memória construída em torno dela, o que indica o quanto parte da tradição literária luso-brasileira sentia-se à vontade para construir projeções em cima de uma desconhecida “femme savante” na mesma medida que tolhia as produções letradas de mulheres setecentistas e oitocentistas. A exortação em torno de D. Rita torna o mito mais aderente ao responder a um anseio apaziguador pela ausência de mulheres nos círculos intelectuais nos séculos XVIII e XIX. Pouco sabemos sobre esta jovem escritora e seus manuscritos históricos foram provavelmente destruídos em circunstâncias ainda bastante misteriosas, mas é bastante salutar problematizarmos acerca das camadas mitificadoras em torno dela e assim lançarmos uma reflexão sobre a relação entre gênero e produção literária na colônia.

Rita Esteves Alves de Vasconcellos
Uma outra Rita, um outro ruidoso e inquietante silêncio. Em 1864, a escritora pernambucana Rita Esteves Alves de Vasconcellos, ainda menor de idade (embora não se saiba precisar sua data de nascimento e morte) escreveu uma biografia do Monsenhor Francisco Muniz Tavares (reconhecido historiador e sócio fundador do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico de Pernambuco). Entregou-a no mesmo Instituto – que ficou registrado no boletim interno da Revista do IAHGP, na edição de número 3, do ano de 1864. O manuscrito foi “recebido com agrado” e mandado arquivar. Depois desta notícia pública do arquivamento, não se tem mais informações a respeito do documento. Por conta da produção deste manuscrito biográfico, o nome de Rita Esteves foi parar em dicionários e almanaques intelectuais, como o de Sacramento Blake (1883) e Maria Thereza Bernardes (1989).

A biografia foi um gênero histórico bastante peculiar aos oitocentos. A escrita da história por meio das vidas de grandes homens e seus feitos era uma forma literária tão distinta quanto válida para delinear através destes sujeitos históricos exemplares, a própria história da nação (OLIVEIRA, 2017). Assim, Rita Esteves ao produzir uma biografia provavelmente elogiosa e laudatória do presidente do referido Instituto não destoava destes aspectos mais intrínsecos à construção do projeto biográfico imperial.

No mês de novembro de 2019, em consulta ao IAHGP para localização deste manuscrito, nos foi informado que ele provavelmente se deteriorou com o tempo e também foi aventada a possibilidade de que algum sócio já falecido pudesse ter levado o documento  para uma biblioteca privada, sendo deste modo, pouco provável encontrar ainda a biografia feita por Rita Esteves.

Estamos diante de um caso flagrante de memoricídio. É a completa aniquilação da memória intelectual de um breve legado; uma rara mulher a escrever uma biografia no século XIX, uma jovem historiadora amadora que usou a vida de outrem como fonte histórica privilegiada para composição de uma narrativa. E por conta de uma negligência que traz marcadores misóginos, hoje não podemos contar com esse documento que certamente nos faria avançar na compreensão dos múltiplos modos pelos quais as mulheres adentraram na cultura escrita oitocentista, sendo também memorialistas e biógrafas, disputando interpretações sociais sobre o passado e seus tempos presentes. Ciente que o descaso com determinados documentos possui dimensões de gênero (quais critérios para que alguns sejam mantidos enquanto outros descartados?), cabe indagar: e se fosse Rita Esteves Alves de Vasconcellos um jovem e promissor escritor? Arriscamos a dizer que seus escritos teriam sido publicados, ou no mínimo, guardados com mais respeito; como afirmou Perrot (2005) ano teatro da memória, as mulheres se constituem como sombras tênues e coadjuvantes em relação aos homens.
Maria Angélica Ribeiro
Nascida em 1829 no Rio de Janeiro, Maria Angélica foi uma prolífica dramaturga que escreveu dezenas de peças encenadas com êxito de crítica e público, sendo que a primeira delas data de 1855. Produziu extensamente até a sua morte, em 1880, deixando várias peças inéditas. Preferia tematizar problemas sociais de sua época, fazendo a crítica de costumes com acidez e denúncia. Ao contrário das “Ritas”, Maria Ribeiro deixou algumas obras impressas e que foram republicadas nos anos seguintes das récitas. Estabeleceu-se como autora e tradutora teatral, passando a viver profissionalmente da sua pena, fato bastante incomum e que contribuiu para ampliar os espaços de atuação das mulheres, sobretudo no campo das artes (SOUTO-MAIOR, 1999). Obteve admiração e críticas favoráveis de escritores como Machado de Assis, quando da estréia de Gabriela (1863) e Cancros Sociais (1865). O sucesso alcançado desta última peça de caráter abolicionista também ajudou a consolidar o nome de Maria Ribeiro no ambiente teatral da corte carioca.

No entanto, de uma produção que contava com mais de vinte peças, hoje só temos conhecimento de três que foram recuperadas pelos esforços da pesquisadora Valéria Andrade Souto Maior (2014). São elas: Cancros Sociais, Um dia na opulência e a Ressurreição do primo Basílio. De acordo com esta pesquisadora os originais de Maria Ribeiro foram destruídos por um incêndio ocorrido em 1893 no Liceu de Artes e Ofícios do Rio de Janeiro – local os seus impressos e manuscritos inéditos estavam guardados. Dentre eles encontrava-se o drama histórico “Dom Sancho em Silves”. Uma peça certamente épica e, a julgar pela aposta no gênero histórico, deveria portar um tom diverso das peças usuais da autora. Pelo título infere-se que estava ambientada em Portugal entre os séculos XII-XIII, tematizando a saga do rei expansionista D. Sancho I (1185-1211); uma narrativa que muito provavelmente demandou por parte da autora uma cuidadosa pesquisa histórica do período. Efetivamente, é mais um texto histórico de autoria feminina que existiu, que foi lido, registrado, que obteve repercussão pública, mas que não conseguiu sobreviver ao infortúnio de um incêndio.

Considerações Finais
Se os escritos destacados nesse curto artigo tivessem sobrevivido a uma sociedade patriarcal que subalterniza a produção intelectual de mulheres, teríamos certamente um outro panorama da escritura histórica feminina, com muito mais elementos para pensar a participação das mulheres na construção do conhecimento histórico nos oitocentos. Possuiríamos, com efeito, mais subsídios para afirmar que a história no século XIX não foi um ofício conjugado apenas no masculino através de homens de letras alojados em academias ilustradas. Lançando mão de formas “não-oficiais” de narrar o passado, seja por meio do drama histórico ou da produção de biografias, nossas historiadoras amadoras traziam consigo marcadores de gênero e da diferença sexual que as fazia produzir à margem de uma sociedade patriarcal e racista que negava às mulheres os direitos mais básicos de cidadania, como o voto e educação secundária.

Dito isto e, pensando em questões contemporâneas ligadas ao ensino, nos indagamos: quais rebatimentos a ausência da produção histórica feminina possui na própria história que ensinamos, considerando ser esta uma narrativa que ainda é monopolizada por homens autores, sobretudo no que diz respeito ao mercado editorial de livros didáticos em que tanto a representação feminina quanto a autoria dos livros são questões ainda lacunares e problemáticas?

Na certeza de que a “amnésia sexista” (MONTERO, 2008) nos legou uma historiografia fraturada, que outras mulheres-autoras o cânone recalcou e silenciou, deixando apenas um pálido rastro historiográfico que teima em sobreviver ao memoricídio e esquecimento?

Referências
Jeane Carla Oliveira de Melo é doutoranda em História pela UFMG e professora de História do IFMA.

ANDRADE, V. Maria Ribeiro: teatro quase completo. Florianópolis: Editora Mulheres, 2014.
BERNARDES, M. T. Mulheres de ontem? – Rio de Janeiro, século XIX. São Paulo, Queiroz, 1989.
DIAS, J.H. O  “Mal-Estar” na História em Three Guineas de Virginia Woolf: Escrita Feminista e a  Crise Do Historicismo. Tese (Doutorado em História). Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019.
DUARTE, C. L. Memoricídio: o apagamento da história das mulheres na literatura e na imprensa. Aracaju, UFSE, 2019. (Mesa redonda no XVIII Seminário Internacional Mulher e Literatura).
FAEDRICH, Anna. “Memória e amnésia sexista: repertórios de exclusão das escritoras oitocentistas. Lêtronica. Porto Alegre, v. 11, n. esp. (supl. 1), set. 2018, s164-s177.
MELO, J. C. O de. Mulher, Professora e Historiadora dos Oitocentos: Herculana Firmina e seu Resumo da História do Brazil (1868). Anais do XXIX Simpósio Nacional de História - contra os preconceitos: história e democracia, Brasília/UnB, 2017.
MONTERO, R. Histórias de mulheres. Rio de Janeiro: Agir, 2008.
OLIVEIRA, M. As vidas de um gênero: biografia, história, ficção. In: Diálogos, Maringá, v. 21, n. 2, 2017.
PERROT, Michele. As mulheres ou os silêncios da história. Bauru: Edusc, 2005.
SACRAMENTO, B. Diccionario bibliographico brasileiro. Rio de Janeiro: Typographia Nacional, v.7, 1883.
SCHIMDT, R. T. Na literatura, mulheres reescrevem a nação. In: HOLLANDA, H. B. de. Pensamento feminista brasileira: formação e contexto. Rio de Janeiro: Bazar do Tempo, 2019.
SCOTT, Joan Wallach. “Gênero: uma categoria útil de análise histórica”. Educação & Realidade. Porto Alegre, vol. 20, nº 2, jul./dez. 1995, pp. 71-99.
SILVA, R. A. da & FERNANDEZ, R. Maria Firmina dos Reis: intérprete do Brasil. Letrônica, Porto Alegre, v. 13, n. 1, p. 1-12, jan.-mar. 2020.
SIMIONI, Ana Paula Cavalcanti; ELEUTÉRIO, Maria de Lourdes. Mulheres, arquivos e memórias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, Brasil, n. 71, p. 19-27, dez. 2018.
SMITH, B. G. Gênero e História: homens, mulheres e a prática histórica. Ed. EDUSC: São Paulo, 2003.
SOUTO-MAIOR, V. A. Maria Angélica Ribeiro. In: MUZART, Z. L. Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999.
VASCONCELLOS, E. Rita Joana de Sousa. In: MUZART, Z. L. Escritoras brasileiras do século XIX. Florianópolis: Editora Mulheres, 1999.

10 comentários:

  1. Jeane,
    Parabéns pela discussão.
    O seu texto é de extrema importância como forma desvelar as páginas esquecidas das histórias das mulheres.
    Não é fácil inserir as mulheres em uma estrutura que já está organizada, codificada, como masculina, no caso, tanto os arquivos, quanto a própria historiografia.
    Creio que seja necessário mudar a estrutura, pensando-a de outra maneira. Assim, quais sugestões você daria para repensar os caminhos historiográficos e incluir as mulheres?

    Carolina Giovannetti

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Obrigada pela questão, creio ser este (construções historiográficas sexistas) um dos nossos maiores desafios quando se trata em iluminar as páginas esquecidas da história intelectual feminina. Aponto sucintamente alguns caminhos aos quais considero válidos:
      - Refletir sobre o papel político da memória no apagamento das mulheres, em especial na relação lembranças e esquecimentos. O que garante a uma intelectual ter sua obra preservada após sua morte? Por que tão difícil manter vivo o legado intelectual de uma mulher?
      - Demandar dos arquivos e instituições de guarda práticas de preservação relacionadas às questões de gênero de modo a disponibilizar maiores repertórios de acesso à informação a respeito da produção intelectual e trajetória de mulheres;
      - Problematizar visões historiográficas sexistas, sobretudo aquelas ligadas a representações generalizantes e pouco atenta às fontes, que sequer admitem a existências de mulheres atuando como historiadoras amadoras antes da profissionalização do campo;
      - E, por fim, operar com conceitos mais amplos em torno do que consideramos ser o conhecimento histórico como uma escrita sobre o passado que pode existir a partir de variados gêneros textuais como o romance, a peça teatral, a poesia épica, o livro didático, o ensaio, etc... Entender como as mulheres representavam o passado no século XIX é se lançar ao escrutínio desses textos e perceber que nem só os historiadores do IHGB produziam interpretações sobre a história e a memória brasileiras.

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    3. Excelente reflexão, Jeane!
      É preciso entender as mulheres na história de uma forma diferente, buscar novas fontes e propor novas epistemologias, considerando também as mulheres como ativas, intelectuais, que interagem na sociedade e propõem novos saberes.

      Carolina Giovannetti

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  2. Os escritos das mulheres tem sido sistematicamente esquecidos ou ignorados, quando olhamos para os grandes cânones da literatura nacional a maioria são produzidos por homens. No século XIX a mulher deveria dedicar-se a ser mãe e esposa, e é nesse período que surge uma preocupação com educação da mulher. Em que medida que este contexto pode ter afetado, não apenas a questão de produção, mas também a questão do arquivamento e de apelo desses obras.
    Parabéns pelo texto.
    Assinado: Milena Calikoski

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    1. Exatamente, Milena. Obrigada pela leitura e comentário. Essa questão que você levanta é essencial para entender a negligência com que boa parte da produção letrada feminina oitocentista foi tratada. Consideradas quase sempre como obras menores e escritos de pouca importância, alguns textos (manuscritos e impressos) de tão vilipendiados acabaram se deteriorando e sumindo com o tempo, dada as condições por vezes precárias de conservação. São muitas as situações e contextos (além do gênero, também de classe e raça) que nos põem diante do memoricídio: maridos e famílias que queimam diários e manuscritos de mulheres impedidas de tornarem públicas suas produções, carreiras desestimuladas (vide Amélia de Oliveira), tipografias pouco interessadas em publicar obras femininas, e, as que se interessavam, geralmente produziam livros com apenas uma edição. O número de autoras que só puderam publicar uma única vez e depois sumiram da cena intelectual é imenso. Como pesquisadora da autoria feminina do XIX, enfrento diversas dificuldades relacionadas ao levantamento, identificação e localização dos impressos. É uma jornada que tem me levado exaustivamente a sebos, alfarrábios e antiquários, troca de emails com pesquisadoras e instituições, fora a própria pesquisa em arquivos e bibliotecas. Um trabalho certamente indiciário e que também é bastante revelador no que se refere a gestão da memória e das hierarquias de gênero em nosso país.
      Jeane Carla Oliveira de Melo

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  3. Olá, Jeane!

    Maravilhoso o seu texto!
    Sempre tive interesse em saber mais sobre essas escritoras, pena que só temos uma vida para estudar tudo. Gostaria que você comentasse sobre a sua trajetória nessa pesquisa: como você escolheu esse objeto? Quais as dificuldades para acesso de informações e fontes?
    Muito obrigada e parabéns pela pesquisa!
    Andréa Mazurok Schactae

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Querida Andrea, obrigada pelos questionamentos. Vou tentar responder de modo mais resumido, tá? Bem, em primeiro lugar, a escolha deste objeto (pensar quem são as historiadoras amadoras brasileiras do século XIX) se deu em virtude de duas questões muito claras pra mim. A primeira diz respeito a eu ser feminista e olhar para a história com uma perspectiva de gênero, o que me leva a pensar que o conhecimento histórico está dentro de relações de poder; quando estudamos mulheres, epistemologia e política são dimensões bastante imbricadas nessa reconfiguração do olhar. O segundo fator se refere ao número significativo de produções históricas de autoria feminina publicadas nos oitocentos - negligenciadas pelo próprio campo dos historiadores. Obras que tiveram um público leitor variado e contribuíram também para a construção de um imaginário coletivo sobre o passado. Juntei, portanto, ambas as coisas para poder pensar de que modo as mulheres participaram da construção do conhecimento histórico no século XIX. Sem uma postura ligada a epistemologia feminista, essa junção sequer seria inteligível ou as inquietações descritas acima não teriam a menor condição de possibilidade. Dito isto, tenho utilizado como fontes livros didáticos, ensaios, poesia épica, biografias e autobiografias escritas por mulheres. Uma massa documental que uma vida só não daria conta de examinar, como vc disse. E onde busco esse material? Em dicionários biobibliográficos do XIX e XX, em notas de rodapé (elas geralmente trazem informações valiosas), em revistas do IHGB, em estudos e teses de outras áreas como Letras e História da Educação, em institutos históricos dos estados, na Biblioteca Nacional, nos jornais disponíveis na Hemeroteca da BN. As maiores dificuldades são: obras esgotadas, perdidas ou extremamente caras (pq são raras, se tornaram itens de colecionadores); famílias que não retornam o contato porque não têm interesse em disponibilizar o espólio intelectual sobre suas antepassadas escritoras; e, agora mais recente, impossibilidade de ida aos arquivos por conta da pandemia. Mas é isso. Temos ainda muitas contribuições a dar no sentido de sinalizar que a história no XIX não foi apenas um ofício conjugado no masculino. A história das historiadoras (amadoras e profissionais) só está começando a ser escrita. Um forte abraço.
      Jeane Carla Oliveira de Melo

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  4. Jeane, muito obrigada!

    Percebi como é uma busca complexa. Um trabalho de detetive.
    Parabéns pela dedicação e pela pesquisa!
    Espero que logo tenha uma livro seu com essas historiadoras.
    Sucesso!

    Um abraço!
    Andréa Mazurok Schactae

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